Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

11. À PORTA DA LEI OU O PADRE ACOMPANHA JOSEPH K., O CONDENADO

Em face do texto inciso À Porta da Lei, que o padre usa como exemplo para que Joseph K. fique clarificado, isto é, ainda mais confundido e perdido, relativamente à natureza do tribunal, e que perceba a ilusão que tomam para com ele, o tribunal, muitos dos que dele se acercam, percebe-se na forma e no conteúdo do discurso o estabelecimento dos registos mais afectivos, embora eivados de ambiguidade, em toda a narrativa: sobretudo a afectividade amedrontada de Joseph K., é certo, que de repente confessa a sua confiança quanto ao seu processo, mais que em quaisquer outros, naquele padre acabado de conhecer tão superficialmente, ele que tão profundamente é conhecido pelo padre:

– És uma excepção entre todos os que pertencem à justiça. Tenho mais confiança em ti do que em qualquer deles, embora conheça muitos. Contigo posso falar abertamente.
– Não te iludas – disse o padre.
– A que respeito podia eu iludir-me? – perguntou K.
– Estás enganado a respeito do tribunal – respondeu o padre. – Nos escritos que servem de introdução à Lei fala-se dessa ilusão: Em frente da Lei está um porteiro...

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 84 a 87.º §)

Do meu ponto de vista, no registo aqui e ali afectivo, mas também afectado (palavra que contém todos os sentidos adequados ao contexto do processo, mas que não se podem vincular completamente a este padre: fingir, presumir, prejudicar, interessar, destinar, aplicar, subordinar, causar padecimento a, alterar moral ou fisicamente), do padre, há todos os contornos figurativos do acompanhamento do condenado que constituem uma velha tradição de consolo espiritual final, onde, por um lado, a sociedade da pena capital se auto-absolvia da execução dos corpos, na medida em que proporcionasse condições e oportunidades de arrependimento e redenção às almas. Era, e é, a sociedade no auge da dualidade platónica tão conveniente e limpa na arte de eliminar. Todo o discurso do padre é peripatético, há ensino e há enigma, há solicitude, quase cuidado e preocupação pelo destino de Joseph K, mas há também o desfile de todo o absurdo plurívoco que reside na completa ambiguidade das interpretações daquela narrativa, À Porta da Lei. Passeiam pela catedral e dialogam, mas mais se agudiza o pathos e a desorientação de Joseph K.

Nesta linha cultural, nesta simbologia de acompanhamento de um condenado feita pelo padre, e onde não há orações nem visões do Paraíso, mas o nada com o nada dentro, a catedral encerra todas as marcas de escuridão que antecedem a próxima execução de Joseph K. Mesmo a figura grotesca e infantilizada do sacristão coxo remete para a deformidade quasimodesca, mas não pura ou inocente, pelo contrário ali absorvendo o papel irracional próprio de um carrasco.

Nas trevas da Catedral, aquele era o último dia de Joseph K. antes de completar trinta e um anos. Mesmo o enterro de Cristo, que Joseph K. contempla como novo, mas trabalhado ao jeito tradicionalmente costumado, preanuncia esta ideia de petrificação mortal, para onde a entropia, o caos interior a Joseph K, o arrasta. Condenado-vítima, K. já está demasiado exausto para raciocinar com clareza, para acreditar que pode transcorrer a porta da absolvição e da inocência, não pode reconhecer no diálogo com o padre senão toda a ambiguidade em que vem laborando desde que primeiramente ouviu a acusação e procurou justificar-se perante a dona da casa e também perante a menina Bürstner, sua vizinha.

A narrativa incisa À Porta da Lei mostra a Joseph K. as possibilidades de liberdade, de escolha por parte, tomando a personagem do homem como exemplo, mas mostra também o inverso, todos os obstáculos que se lhe interpõem. Transcorrer a porta da Lei, ou não, é decisão que qualquer um de nós hesitaria em tomar. Puníveis e sujeitos ao sofrimento abrindo-a ousadamente ou aguardando por um convite autorizador, o melhor será envelhecer, travar conhecimento e familiaridade com as pulgas na gola do porteiro e esperar para ver o que acontece depois.

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