Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

10. A CONSTRUÇÃO ORACONAL: REDUNDÂNCIA E CIRCULARIDADE

Cada conjunção adversativa, cada oração coordenada adversativa representa acentuadas vezes aquela curva no labirinto sem fio de linho possível a que Joseph K., e de resto todos os demais protagonistas kafkianos, permanecem condenados. Encontramos à superfície do texto homólogas marcas de uma circularidade inconsequente e inconclusiva nos percursos e buscas das personagens relevantes, nas tomadas de decisão indecisas, nas acções erróneas, que igualmente se detecta no plano da profundidade textual.

O modo como as linhas de rumo lógicas da construção oracional kafkiana, marcadas pela adversatividade e pela concessividade, representam inflexões circulares, mudanças de direcção quer do ponto de vista da acção, quer do da reflexão. É precisamente a esse nível que desde logo se giza a espiralização da narrativa rumo ao paroxismo da inconsequência e da inutilidade, pois a verdade só vem no momento da morte e não é acessível a partir do ângulo da leitura. Quando, em face da sua execução, nas últimas linhas de O Processo, Joseph K. se interroga sofregamente acerca de um vulto que, à distância e a contra luz, enigmaticamente se manifesta silencioso entre a possibilidade de auxílio e a da conivência com os seus jocosos executores, a faca que lhe espetam no coração e nele rodam duas vezes configura claramente a ideia de chave: a chave que se roda e que serve para abrir e para fechar está ali manifesta e mais que descobrir qual era a sua acusação, como a atitude de culpa o fora impregnando numa espécie de crescendo implícito impreciso em todos os seus movimentos e buscas, a única interrogação que Joseph K. exclui é o «porquê» daquela execução, porque, caso ela se não operasse, o caminho por que Joseph K. optaria era o do suicídio, obliterando assim a raiz da sua angústia. O problema da morte não é o problema da morte e, tal como o desfecho de O Processo, no texto Pequena Fábula, as duas personagens, o rato e o rato, estão diante do mundo infinito onde não há fronteiras e o que a princípio parecia tão grande que até metia medo ao rato, levando-o à procura de alguma segurança só vem no momento da morte, metáfora da vida: a verdade só vem no momento da morte. Fugindo do infinito não é possível reverter a marcha porque não há muitas soluções.

A resposta às interrogações de Joseph K. é, portanto, escatológica, só é acessível mediante a morte, porque mesmo não havendo teologia nem transcendência, nem metafísica, há, o que é sobejo, a força eloquente do silêncio. Com a sua morte, acaba a agitação, acaba a angústia: faz-se silêncio. Só a morte estanca a agitação e a inquietude da personagem kafkiana. Ora, o uso das orações coordenadas adversativas e das subordinadas concessivas, apresentando situações, mas pondo-as de imediato em causa ou atenuando-lhes a força, sublinha a sua visão do mundo, manifesta continuamente o paradoxo que nele está inscrito:

Era uma incumbência que, noutra altura, teria sem dúvida considerado honrosa, mas que aceitava agora de má vontade e apenas porque só com grandes esforços podia ainda defender a sua reputação no banco.

(…) o tempo que actualmente passava no banco rendia-lhe muito menos que antigamente, passava várias horas em que mal conseguia fingir que trabalhava, mas, apesar de tudo, as suas preocupações eram maiores quando não estava no escritório.

Teria podido sem qualquer esforço recusar a maior parte dessas missões, mas não ousava fazê-lo, visto os seus receios assentarem nos mais débeis fundamentos e uma recusa equivaler a confessá-los.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §)

Sob uma escrita essencialmente voltada para o interior, em permanente auto-análise e perpétuas auto-justificações, mas alheia a psicologizações, as personagens revelam uma endémica insegurança. Comprimidos pela omnipresença delatora dos sistemas, em estado de aflição por motivos profissionais ou outros, desconfiados das acções e intenções alheias, amedrontados e cercados de ameaças imaginárias, mas que poderiam ser reais do seu estreito porque atormentado ponto de vista, a personagem kafkiana sufoca nas próprias dúvidas; é, portanto, em desconforto e em dúvida que, no capítulo em análise, Joseph K., indigitado para servir de guia turístico a um correspondente italiano do banco onde trabalha, pondera as vantagens e desvantagens dessa tarefa, o significado e o objectivo que representa terem-no escolhido a ele e não a outro, impendendo como impende sobre ele o desassossegador estigma de acusado. À tona dos raciocínios que se desenrolam, justificadamente paranóicos, o medo é o elo condutor, líquido amniótico donde germinará uma linha de rumo imediata:

Não queria que o afastassem nem um só dia do seu trabalho, pois o medo de não voltar a ser admitido era demasiado grande e, embora ele considerasse exagerado tal receio, nem por isso se sentia menos aflito.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §)

Mas mesmo assim, seja esta experiência do perturbador, no seu todo, alavanca de uma imediata ou posterior reacção radicalmente oposta, marcada pela clara rejeição da mundividência kafkiana, sombria e encurralada, portanto, afinal e paradoxalmente, uma experiência luminosa para o estudioso e para o leitor, pela rejeição que desencadeia; seja ela, pelo contrário, uma confluência interior com esse homólogo ao mundo dos homens, que é o mundo literário kafkiano, o que resulta é certamente uma reperspectivação da condição humana: é o observador, o leitor, o estudioso, assim como, a montante e num tempo outro, o escritor, que tingem, no processo de escrita assim como no de leitura, com o cinzento, o optimista, o desesperado, o árido, que os habite, esta condição, anuindo a ela ou rejeitando-a. É deles a responsabilidade por ver e fazer ver no homem esse inexorável clausus locus sine clauis, hermético labirinto, irónica condição-condenação ao sem-sentido de tudo. Por outras palavras, a perspectiva é tudo. Do ângulo adoptado depende a coloração e a maior ou menor completude do observado.

Mas não se pense que o humor se ausenta inteiramente do texto kafkiano ou que só encontraremos o de tipo negro. Intrometem-se marcas que roçam o insólito e a leve loucura:

Respondeu com algumas frases de circunstância que o italiano escutou com um sorriso, ao mesmo tempo que, nervosamente, levara repetidas vezes a mão ao espesso bigode azul-cinzento que, de tão perfumado, quase tentava uma pessoa a aproximar-se para o cheirar.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 5.º §)

Sob os toldados céus do mundo kafkiano, sempre plúmbeos e chuvosos, as personagens – podemos tomar Joseph K. como modelo para a generalidade dos protagonistas nos demais textos – nunca erguem os olhos da sua agitação, pois não há algum azul em que reparar e, mesmo que houvesse, nunca poderiam deter-se nele. Por outro lado, também à superfície, os pássaros não trinam, a música nunca se manifesta, como é desconhecido o bálsamo de qualquer melodia porque só a aridez pode dominar, não a contemplação do horizonte por si mesmo:

De facto, numa igreja assim tão vazia isso tornava-se extremamente necessário. Mas num sítio qualquer da igreja, ajoelhada perante uma imagem da Virgem, havia ainda uma velha que também devia ter vindo. Mas se ia haver sermão, porque não começam a tocar o órgão? Este, porém, escondia o seu imponente volume no meio das trevas, que pouco mais deixavam passar que umas débeis cintilações, e mantinha-se silencioso.

Se, à parte quaisquer psicologizações, o texto vive da e para a interioridade nem por isso há nela qualquer momento de repouso, de doçura, aliás, na medida em que reproduz a desespacialização, o texto é, ele mesmo, espaço de passagem com que as personagens se podem retorcer num inescapável sofrimento. Inapelável também: todo o Inferno da Divina Comédia, horrivelmente belo na sua grandiosidade e contrastes exprime menos a condenação, sobrelotado de espíritos, entidades mitológicas, entre as quais o Minotauro, e de demónios, que todo o universo literário Kafkiano, nas suas tonalidades fechadas, na expressão de todas as rotinas dos indivíduos no seio da sociedade burguesa:

Era lo loco ov'a scender la riva
venimmo, alpestro e, per quel che v'er'anco,
tal, ch'ogne vista ne sarebbe schiva.

Qual è quella ruina che nel fianco
di qua da Trento l'Adice percosse,
per tremoto o per sostegno manco,

che da cima del monte, onde si mosse,
al piano è sì la roccia discoscesa,
ch'alcuna via darebbe a chi sù fosse (1):

(A Divina Comédia, Canto XI, O Inferno, vv. 1-9)

Perante a lógica oprimente dos poderes exercidos, da burocracia transversal a tudo e de tudo bloqueadora, toda a beleza é irrelevante, inaplicável, inexistente à sensibilidade observadora de Joseph K. e dobra-se servilmente a outros interesses imediatos, a uma lógica que não apenas a transcende negadora e negativamente, como também a subjuga:

(...) porém, o que decisivamente determinara a sua escolha fora o facto de ter conhecimentos de História de Arte, conhecimentos esses cuja importância foi exagerada no banco ao saberem que ele durante um certo tempo havia sido membro da Junta para a Conservação dos Monumentos Artísticos da Cidade, o que aliás acontecera unicamente por uma questão de negócio.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §)

Ainda assim poderemos encontrar a esperança? Como concluiu Vilas-Boas, no seu ensaio Ler a Esperança em e para além de Kafka (1984),

«... o elemento esperança é detectável não só a nível diegético, como sobretudo a nível das estruturas deixadas abertas para a leitura. É juntamente pela conjunção dos vários factores simultaneamente presentes (a esperança, o desespero, o niilismo, o absurdo) que esta obra impede uma leitura fechada, em sentido único.»
E é por isso, porque cada leitura é única e exclui o determinismo de conclusões unívocas, que pode dizer-se da completa responsabilidade de quem lê quer a capacidade imaginativa para alternativas ao banho gelado desta exigente mundividência, quer, no fundo, mesmo nele mergulhando, a capacidade de evasão desse universo, afinal um entre muitos possíveis.

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