Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

9. A MULHER E AS MULHERES - DEPRECIAÇÃO E AMBIGUIDADE

Aparentemente, o padre vem aconselhar Joseph K., dar-lhe orientações úteis. Nisso acredita Joseph K. É, porém, o próprio padre que lhe exige desconfiança até de si, sugerindo que não se iluda. Uma das coisas que começa por fazer é verberar o papel das mulheres junto de quem Joseph K. busca auxílio e o certo é que, quer um quer outro, manifestam uma peculiar misoginia, acentuada sobretudo em Joseph K., que caricaturiza a mulher quanto ao seu poder e à sua utilidade:

– Procuras demasiado o auxílio de estranhos – disse o padre com um ar de desaprovação – e em especial o das mulheres. Não vês que esse não é o verdadeiro auxílio?
– Algumas vezes, mesmo muitas, podia dar-te razão – disse K. –, mas sempre não. As mulheres têm um grande poder. Se eu conseguisse que certas mulheres que conheço trabalhassem em conjunto a meu favor, não tenho dúvidas de que triunfaria, especialmente numa justiça como esta que é quase toda constituída por homens que são uns autênticos doidos por saias. Experimenta mostrar, ao longe, uma mulher ao juiz de instrução, e vê-lo-ás derrubar a mesa e o acusado só para chegar a tempo.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 61.º e 62 §§).
A Desespacialização

Mergulhar na matéria literária kafkiana corresponde a uma experiência do perturbante irredutível e o que perturba, entre muitas outras coisas, é simultaneamente o movimento incessante das personagens, perdidas no acessório, desconhecedoras ou incapazes do que para elas mesmas signifique resposta a problemas, caso ela exista, e é também o desenho dos espaços em que se movem, sempre baços, apertados e desprovidos da possibilidade de contemplação do conjunto. A questão da desapropriação do espaço, a questão da desespacialização oprimente, é algo que, dentro da obra deste autor, coloca-se mais agudamente ainda em Metamorfoses.

Ainda no seu gabinete, enquanto regista de um dicionário as palavras que o ajudarão com o italiano, o seu território torna-se lugar de passagem e, sobretudo, de invasão, sendo que, perante isto, Joseph K. não exprime senão conformismo:

Depois disto o director despediu-se de K. este decidiu passar o tempo que ainda lhe restava a copiar do dicionário vocábulos pouco usuais de que tinha necessidade para o desempenho da sua função de guia. Era um trabalho extremamente enfadonho; contínuos traziam o correio; funcionários vinham pedir informações diversas e, vendo K. ocupado, deixavam-se ficar à porta mas não se iam embora antes daquele os ter ouvido; o director-interino não deixava escapar a oportunidade de incomodar K., entrava com frequência no gabinete, tirava-lhe o dicionário da mão e folheava-o nitidamente à toa; os próprios clientes, quando a porta se abria, surgiam na semiobscuridade da sala de espera e curvavam-se, hesitantes – queriam chamar a atenção mas não tinham a certeza de serem vistos; tudo se agitava ao redor de K., como se este fosse o centro de tudo, enquanto ele compilava as palavras de que tinha necessidade, folheava o dicionário para as transcrever, procurava pronunciá-las e, finalmente, tentava aprendê-las de cor.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 7.º §).

No capítulo nono, Na Catedral, o penúltimo de O Processo, sob análise neste trabalho, surpreendemos precisamente, quando ao espaço, essa impressão recorrente nas obras do autor – a de que qualquer que seja a configuração espacial e o respectivo contexto, tarde ou cedo ela comportará desconforto e desorientação, activando comportamentos bizarros, observações insólitas e um tom geral de insegurança e atrapalhação:

(...) as dimensões da catedral pareciam-lhe estar precisamente na fronteira do que era suportável pelo homem.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 33.º §).

(...) Se K. agora não se tivesse voltado completamente, o gesto que fizera não teria passado dum pueril jogo de escondidas. Voltou-se e viu então que o padre lhe fazia sinal para se aproximar. Como agora tudo se podia passar sem qualquer disfarce, correu para o púlpito – por um lado por curiosidade e por outro para poupar tempo – em grandes e velozes passadas.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 35.º §).

É o facto de se ver observado pelo padre que aqui condiciona a sua perspectiva. Joseph K. perdera, desde que fora acusado, o anonimato. Todos o conhecem e lhe falam do seu processo, da sua acusação, e além do mais, parecem saber mais que ele. O seu nome reveste-se de indesejável e é fonte de embaraço:

– És Josef K. – disse o padre, levantando a mão por cima do parapeito num gesto vago.
– Sim – volveu K., pensando como dantes pronunciava o seu nome com toda a franqueza e como, ultimamente, este era para ele um verdadeiro fardo; agora, pessoas que encontrava pela primeira vez, conheciam-lhe o nome. Como seria agradável só ser conhecido depois de ter sido apresentado.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 35.º e 36.º §§).

Em Kafka, não há a possibilidade de quedas icárias, uma vez que o problema da subida, a fim de observar melhor, nem sequer se coloca. A paisagem aquém e além deles, obliterada da acção ou tornada irrisória, não pode oferecer-lhes transposições simbólicas, simbólicas evasões, relativizações do eu, a redenção mediante o sonho. Pelo contrário, dir-se-ia que qualquer paragem consoladora apenas relevaria os próprios medos e a atitude de culpa por ter momentaneamente rompido com o cumprimento (ou a simulação de cumprimento) do seu dever:

(...) a janela, à qual, nos últimos tempos, se costumava sentar com demasiada frequência, atraía-o mais do que a secretária, mas resistiu e pôs-se a trabalhar.
(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 2.º §).

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