Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

4. O TEMA DA BUSCA EM KAFKA COMO UM TEMA PERVERTIDO

N’O Processo encontramos algo que é indiscutível em toda a obra de Kafka, marcas do que Steiner nota, interrogando-se, ao entrar no tratamento dos estudos temáticos, como um terceiro domínio da Literatura Comparada, e que é a ideia de que há apenas uma história perpetuamente retomada, um tema somente a dominar as literaturas ocidentais, desde as mais remotas e estruturadoras manifestações dos mitos helénicos às respectivas actualizações literárias posteriores:

«It has been argued that there is, as Robert Graves pronounced, ‘one story, and one story only’: that of ‘The Quest’ (...) Analysis, notably by Russian formalists and structural anthropologists, has confirmed the remarkable economy of motifs the recurrent, rule-bound techniques of narrative which prevail in mythologies, folk-tales, and the telling of stories in literature the world over

(Steiner: 1994).

Mas em Kafka, e concreta e exemplarmente n’O Processo, se se confirma a presença desta monovalência temática de fundo, ela constitui uma torção dos pólos do bem e do mal, que se fundem e confundem, e é, além de tudo, toda ela agónica, não tendo por recompensa quaisquer paliativos, quaisquer indícios de satisfação, vivendo, bem pelo contrário, da insatisfação e da hybris, isto é, do erro desencadeado e inestancável que conduzirá à morte, devorando absolutamente todas as hipóteses alternativas, ainda que a condicional ‘se’ seja um dos recursos inventivos da literatura mais fantásticos porque permite achar saídas, insuspeitos desfechos e sustentar lendas, não são em Kafka operativos, mas mero mediador retórico do à partida invalidado:

«It is, moreover, distinctly possible that the mechanics of theme and variation, essential to music, are incised also in language and representation. It may be that a ‘formulaic’ way of telling the same story differently – observe our Westerns – is an impulse of quasi-genetic force.»

(Steiner: 1994)

Destituída dos mais ténues vestígios de kalogagatya, a personagem kafkiana releva dessa construção de visões e de mundos onde se materializa aquilo a que Elias Canetti, no prefácio à edição das Cartas a Felice, refere como sendo uma fobia ao poder, sentido e exercido:

«... temendo o poder sob todas as suas formas, o verdadeiro objectivo da sua vida consistiu em evitá-lo igualmente sob todas as formas, pressentindo-o, descobrindo-o, nomeando-o e representando-o em toda a parte onde os outros não se apercebem dele».
O capítulo nono de O Processo pode ser visto como o ponto crítico do romance, pois a misteriosa ida à Catedral de Praga e o diálogo com o padre é a chegada a um auxílio ou ao seu completo oposto. Atravessar as narrativas kafkianas representa um trânsito pelo espinhoso e antecipa a noção de que se trata de um espaço de passagem do nada para coisa alguma.

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