Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

8. O PESADELAR E O PERTURBATÓRIO COMO TOPOI

Se, de acordo com o catecismo católico, o topos Purgatório, imaginário? efectivo?, não sabemos, é aquele em que o vivente humano, maculado e imperfeito, atravessada a porta da morte, cai num processo purificador, antes de lhe ser possibilitada a visão beatífica do Céu, ao leitor e estudioso de Kafka espera uma tonalidade mental, continente incartografável, pontiagudo como faca, instável, deprimente e demencial, que poderia nomear-se de Perturbatório, cuja saída para subsequente visão beatífica pode ser apenas da responsabilidade completa do que lê e do que estuda porque nenhum narrador-autor kafkiano lha dará. Kafka é o lado pesadelar do onírico ou o onirismo em estado de permanente pesadelo e a tarefa do leitor terá de ser a de estabelecer a justa onirocrisia, o fio de Ariana possível. Ler os seus textos gera um efeito espinhoso, mergulho na água gelada de um Elba petrificado. Esse baptismo no desconforto de todas as buscas inúteis, de todas as decisões inconsequentes ou erróneas, de todos os movimentos, afinal, para lado nenhum, é-nos revelado como aparentemente consubstancial à espécie humana e uma necessidade. A necessidade de um acordar redobrado para a paciência, para a saúde e a resistência que quotidianamente buscava o devoto e sábio avô Amschel, no seu hábito austero, que lhe não garantiu talvez a centenariedade, mas lhe recordava certamente, com toda a violência, a mortalidade e a dor e lhe incutia uma enorme humildade fosse em face do seu Deus Elohim, fosse dos demais seres humanos.

O acto de construção do objecto de arte literário, objecto em que se transmuta tantas vezes também o próprio comentário crítico, é a perpétua e necessária reedição da função orfeica que, na perda tormentosa e na decisão a todos os esforços de resgate, descendo aos infernos ou deles subindo – Kafka, mais que viver, procurou compreender a existência, dando-lhe um tom de protesto e elegendo a literatura como o seu caminho – conserva intacta a lira encantatória como instrumento poderoso de humanização e condescendência sobre quaisquer dos elementos que lhe foram num primeiro momento oponentes.

Mas parece evidente que, no caso kafkiano, essa função orfeica é anti-encantatória e à sua lira faltam cordas ou estão claramente desafinadas: não é a paz e o deleite capazes de amansar feras o que este objecto de arte comporta. Pelo contrário, a arte consiste em mostrar outras dimensões que tendemos a rejeitar, mas que carecem de potente iluminação. Por isso mesmo, com ele agudiza-se o inferno no próprio inferno e este contagia de vazio e desespero mesmo os lugares de ventura. Nem a amplitude dos espaços é menos geradora de claustrofobia. Lá, onde o silêncio é eloquente e a serenidade se bebe a largos tragos, como por exemplo na deslumbrante catedral de Praga, Joseph K. não colhe uma suficiente trégua com a sua oprimente interioridade. A catedral nada tem de espiritual para ele que não encontrará nela qualquer analgesia à sua angústia. Pelo contrário, a sua angústia mais se adensa, mais se enovela, e nem da peripatética conversa com o padre, circulando de um lado para o outro, segurando a lâmpada iluminadora dos sermões, K. obtém a luz. Para o parto da confiança e da alegria, e antes de mais, para uma saída da sua situação de acusado, parece não haver episiotomia que baste.

Um bom exemplo da inconsolabilidade dos espaços está precisamente no nono capítulo de O Processo aliada a uma estranha marcação temporal: lá fora chove, Joseph K. chega à catedral precisamente às dez horas. Ali aguarda o italiano. Uma vez que este não chega, Joseph K. determina-se a esperar durante meia hora, mas aborrece-se, pensa em sair. Muda, porém, de ideias perante o desconforto lá fora; aconchega-se melhor no seu sobretudo, arrastando um farrapo para debaixo dos pés e decide permanecer sentado, folheia o álbum de monumentos que trouxe, observa os retábulos ao longo das paredes da catedral, o contorno indefinido dos objectos e a aparência grotesca dos raríssimos elementos humanos, o sacristão coxo e a velha de pesado lenço diante da imagem da Virgem:

K. percorreu as duas naves laterais e encontrou apenas uma velha envolta num pesado lenço a olhar, ajoelhada, para uma imagem da Virgem. Viu ainda ao longe um sacristão coxo desaparecer por uma porta na parede.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 18.º §).

Ao longe, no altar-mor, brilhava um grande triângulo de círios; K. não podia dizer com segurança se já tinha visto. Talvez só agora tivessem sido acendidos. Os sacristães são sorrateiros por profissão e não se dá por eles. Quando K. casualmente se voltou, viu, não longe de si, uma vela comprida e grossa que ardia presa a uma coluna. Por bela que fosse a intenção, para iluminar os retábulos, que na sua maioria se encontravam na penumbra dos altares laterais, a luz da vela não só era nitidamente insuficiente como também ampliava o negrume. O italiano, não aparecendo, tinha procedido duma maneira tão inteligente quanto indelicada, pois, de facto, não teria podido ver nada, ter-se-iam de limitar a examinar algumas imagens com o auxílio da lanterna eléctrica de K.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 19.º §).

Tudo está desprovido de encanto, dominando o fantasmagórico e o negrume. No fim deste capítulo, após o colóquio com o padre, quando pretende ir embora, Joseph K. tem medo, está escuro, sente-se perdido e inseguro, desconhece o caminho e pede auxílio ao padre que lho dá. Joseph K. esquece que tem uma lanterna eléctrica no bolso, mas da sua desorientação não poderá qualquer luz dar conta:

Ainda que nessa altura não lhe tivesse ocorrido tal pensamento, K. respondeu logo:
– Pois quero. Tenho de me ir embora. Sou gerente dum banco e tenho lá gente à minha espera; vim aqui apenas para mostrar a catedral a um estrangeiro.
– Bom, – disse o padre estendendo a mão para K. –, vai.
– Sozinho nesta escuridão não sou capaz de me orientar.
– Vai até à parede da esquerda, depois continua ao longo dela sem a deixares e encontrarás a saída.

O padre mal se tinha afastado alguns passos e já K. gritava muito alto:
– Espera, por favor!
– Estou à espera.
– Não queres mais nada de mim?
– Não.
– Há pouco foste muito amável para mim e explicaste-me tudo, mas agora deixas-me como se já não te preocupasses comigo.
– Mas tu tens de ir embora.
– Pois tenho, compreende.
– Compreende tu, primeiro, quem eu sou.
– És o capelão da prisão – disse K., aproximando-se do padre.

O seu regresso ao banco já não era tão necessário como o havia manifestado; ainda podia muito bem ficar.
– Pertenço à justiça – disse o padre. – Por que razão havia eu, pois, de querer alguma coisa de ti? A justiça não te quer nada. Agarra-te quando vens e larga-te quando partes.


O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 109.º a 125.º §§).

Antes, porém, esse misterioso padre sobe a um insólito púlpito minúsculo, acende uma lâmpada, e em vez proferir um sermão, interpela Joseph K. que já se dirigia para a saída; mostra conhecê-lo e ao seu processo; diz-se capelão da prisão, desenrola-se um diálogo que promete auxiliar e tranquilizar Joseph K. A figura do padre, no seu púlpito absorve a função de juiz e obtém de Joseph K. uma atitude submissa, de obediência imediata e irreflectida, porque à voz de comando do padre junta-se a sua importância hierárquica. Subitamente, já é noite, mas uma noite inapelável porque dupla, uma vez que é também interior a Joseph K.:

O padre inclinou a cabeça para a balaustrada; só agora parecia oprimido pelo tecto do púlpito. Lá fora como estaria a tempestade? Não era um dia nublado, era já noite alta. Nenhum brilho de qualquer vitral era capaz de atravessar a parede de trevas.
E, no entanto, o sacristão começava precisamente nessa altura a apagar, uma após outra, as velas do altar-mor.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 63.º e 64.º §§).

O tempo em literatura é sempre um tempo morto, como mortas são também as personagens, os momentos e as paisagens. Cabe, porém, à palavra poética erigi-los de novo a uma existência que, embora de actualização fugaz e euridiciana, é em todo o caso indelével à sensibilidade e prolongável mediante a crítica.

E Kafka exige ainda tal crítica. O seu Mundo dos Mortos continua a ecoar, à procura da verdade, nos meandros processuais da existência de cada um de nós, indigitados e acusados tantas vezes pela doxa que nos envolve proximamente, e pode accionar, hoje, energias de reflexão provocatórias da vida social e do papel do indivíduo quanto ao lugar que ocupa na aldeia, que é hoje o planeta, porque a literatura será sempre das manifestações artísticas mais poderosas na tarefa de, mediante a retórica do insólito e da ironia, desmontar, questionando-os, sistemas de opressão e de injustiça onde o homem corra o risco de constituir, no farejar utilitário de quaisquer estruturas, apenas um número sob manipulação. Seja pelo Templo, seja pelo Partido ou mesmo pelo Capital, na sua lógica global cega, tais estruturas permanecem activas, com todas as pulsões bárbaras e capazes de sangue que lhe são consubstanciais. Os seres humanos, ainda há poucos momentos arrancados à Idade da Pedra, permanecem enredados na indústria da guerra, na exclusão dos mais fracos, portanto, na sujidade de estar sempre em queda.

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