Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

2. ADVERSATIVIDADE COMO TRADUÇÃO RETÓRICA DO PARANÓICO-ESQUIZOFRÉNICO?

«tudo o que não é literatura me aborrece e odeio porque (não) me perturba».
Kafka

As questões de fundo suscitadas pelas narrativas kafkianas desaguam na superfície e se os seus textos são nocturnos, se a sua obra é nocturna, isso terá de estar também necessariamente na forma. Falar em adversatividade e em interrogação em Kafka, conforme pretendo, embora vise remeter para processos retóricos (o uso absolutamente recorrente, reiterado, da conjunção coordenativa adversativa «aber», «mas», ou de conjunções e locuções conjuncionais equivalentes, por exemplo) e as suas interrogações inconsecutivas e inconsequentes no corpo textual, releva de pressupostos de base na mundividência kafkiana, uma mundividência sempre reconduzida à sua pessoa e ao seu contexto, ao seu problema e à sua história e apenas por isso, na medida em que se nucleariza em torno de si mesmo, se torna, por sua vez, reflexa da vida social ou dos mecanismos de aleatório e acaso da vida em geral. Indiferente à ideia de povo, o seu modo de estar foi por demais caracterizado como resultante em boa medida das suas circunstâncias particulares de judeu tiranizado pelo pai, e, como sintetiza o mesmo Ernesto Sampaio (1987):

«para quem era mais importante compreender a existência do que simplesmente viver» (...) «símil perfeito do animal do seu conto O Covil, a quem os breves contactos com o ar livre da floresta dão uma percepção da realidade que reduz a sonhos ou a sombras as criações do seu próprio espírito».

Mas também por se tratar o seu de um contexto criativo marcado por uma desolação conjuntural inevitável e que pode explicar-se como

«uma característica comum à maioria dos escritores alemães que escreveram em Praga ou sobre Praga, assim como a ironia com que se consideram a si próprios, deixando entrever um verdadeiro ódio ao eu, reflexo provável da desilusão mórbida causada pela atrofia das energias criadoras da velha Áustria, num sentimento que perdurou na parte alemã de Praga mesmo depois do Império se haver desfeito.»
(Ernesto Sampaio, 1987).

A escrita de Kafka, como observa Vilas-Boas (1984), acaba por ser

«a ficcionalização das suas interrogações. E interrogar é o primeiro passo para a mudança, como tal é um indício de esperança. Interrogar-se é tentar compreender os sistemas que dominam os homens e de que estes são duplamente vítimas: por um lado, pelos próprios mecanismos do sistema, por outros lado, pelas imagens interiorizadas que eles constróem sobre esse mesmo sistema».

Seja como for, quer pela dimensão labiríntica concedida ao texto, dimensão resultante do uso absoluto e crucial do «mas», instituindo oposições constantes e constantes correcções de orientação, quer pelas interrogações que sinalizam a desolação, (no texto kafkiano estamos no âmago de desassossegadas, perpétuas e bruscas confrontações entre sintagmas inteiros, e em que o leitor ele mesmo se confronta com a circularidade inter-conflituante dos pensamentos, das reflexões e decisões do protagonista), temos um narrador genericamente equi-sapiente relativamente às personagens, mas cujo desenho delas passa pelo paradoxo do movimento e da ancoragem a determinados objectivos provisórios e simultânea e imediatamente aos seus opostos. É assim enquanto ancorado a metas avulsas, impulsivas e vagas, longe de uma metodologia que privilegie a reflexão, que o protagonista Joseph K. se consome numa autofagia interior, num desgaste e dessoramento tais, que a morte aparece efectivamente como o ansiado remate, morrendo com o protagonista, o leitor, forçado partícipe do processo mortífero em que aquele se enreda ou é enredado.

Sinalização da sua rebeldia, em tensão obediente e surda, quanto à lógica de poder no local de trabalho, ao longo do romance e neste Capítulo Nono, Na Catedral, cada asserção em torno de Joseph K. apresenta um tópico sobre que se detém a sua reflexão e de imediato a sua contraditação. Este jogo é levado ao limite, ao longo da narrativa, conduzindo a que se fundam, num só plano, o conteúdo agónico do protagonista e a agónica estrutura textual labiríntica que o suporta, pressuposto este de relevância tal, que a luta entretecida no âmago de Joseph K. e a dimensão agónica da narrativa ela mesma, a partir de determinada altura nunca diz respeito tanto aos elementos oponentes que lhe são internos (outras personagens, a configuração do próprio enredo e os obstáculos nele inclusos, por exemplo), mas sobretudo às instâncias de oposição interiores ao próprio Joseph K., os mecanismos de suposição, de implicitação a partir de premissas tão válidas como erróneas, tão relevantes como irrelevantes de que, por desgaste e por medo, é acometido. Narrativamente, é sempre posto em relevo o estado de aflição de Joseph K. relativamente a todas as coisas, o medo de invasão e intrusão do seu espaço de trabalho perante a sua passividade derrotada e abúlica, e ao ensaiar Joseph K. quaisquer caminhos de fuga do que o angustia, o refúgio provisório possível só pode ser a auto-sugestão, algo que surpreendemos à cabeça deste capítulo nono, sobreposição de várias camadas de pesadelo enoveladas por dentro:

Cada hora que o faziam passar fora do banco era para ele motivo de preocupações; o tempo que actualmente passava no banco rendia-lhe muito menos que antigamente, passava várias horas em que mal conseguia fingir que trabalhava, mas, apesar de tudo, as suas preocupações eram maiores quando não estava no escritório. Julgava então ver o director-interino, que estivera sempre à espreita, entrar de vez em quando no seu gabinete, sentar-se à sua secretária, rebuscar os seus documentos, receber clientes aos quais K. estrava ligado desde há anos por sentimentos muito próximos da amizade, dar-lhes conselhos bem diferentes dos seus e talvez mesmo descobrir erros de cuja presença ameaçadora K. se dera sempre conta durante o trabalho mas que já não podia evitar.
(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §).

2 comentários:

Anderson Fonseca disse...

eu sou anderson do blog desenredo que vc ja visitou, por entre em contato com meu e-mail : luizdovalefon@hotmail.com me envie seu e-mail e vou mandar a permissão para vc publicar

lys disse...

He leido el proceso y es en verdad un relato inquietante con sorprendente final.

Un saludo vecino.