Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

1. INTRODUÇÃO: SOB A ESFERA DA ENTROPIA

«... vid'io lo Minotauro far cotale;
e quello accorto gridò: «Corri al varco:
mentre ch'e' 'nfuria, è buon che tu ti cale».


(A Divina Comédia, Canto XI, O Inferno, vv. 25-27)


Talvez aparente ser praticamente impossível dizer o novo quando se acede à leitura e se faz a interpretação de Kafka. E isto não só por não se poder escapar a conclusões pacíficas mesmo se controversas sobre ele, conclusões em todo o caso sempre passíveis de leituras pluriangulares, tratando-se de um autor áspero, cujos textos esfíngicos exigem árduas lutas de que se sai sempre perdedor e devorado e nunca edipianamente aureolado, mas sobretudo por ser já vasto e de qualidade apreciável quanto sobre ele tem sido escrito. É impossível escapar, lendo Kafka, ao peso do silêncio e às coordenadas existenciais nas suas narrativas de heróis átonos. Se não fosse obviamente possível alimentar a expectativa, e por vezes confirmá-la, de que se pode acrescentar algumas coisas novas e inteligentes sobre a paradigmática imbricação unitária autor-obra, mais ninguém se aventuraria a escrever uma linha sobre um e outra, o que não acontece.

O mundo kafkiano ― a complexidade nele entretecida pelo esquizofrénico e pelo paranóico ditados por (ou resultantes de) uma naturalmente egoísta entrega à escrita, lá, onde o plano onírico se reconverte e refunde no literário, mundo sobre o qual o mesmo Kafka fosse talvez o que menos sabia ―, sempre se prestará a leituras novas, com energia inaudita. Nelas, o novo consistirá afinal e precisamente na explicitação, ainda que a partir dos destroços que bóiam à superfície dos seus textos ― dizia Hugo von Hofmannsthal que a profundidade devia ocultar-se, e, quando lhe perguntavam onde, respondia que à superfície ―, das relações entretecidas pelo ontológico e o poético e o modo como este último, obviamente em sentido lato, pelo menos tal como a Teoria da Literatura e os seus críticos têm manejado tal conceito, partilha com o primeiro uma natureza, sob os pontos de vista estrutural, temático e existencial, marcada pelo entrópico e o centrípeto, o que é, como tom absoluto e geral na totalidade de uma obra, raro em literatura.

Raro em literatura, para se não dizer ímpar, porque genericamente a construção literária das narrativas mais ou menos clássicas e mais ou menos intemporais faz concebíveis diversas vias êxodais, isto é, pontos por onde as personagens entram (entrar é sempre sair de algum lugar para entrar nalgum outro, nunca havendo para o ser humano êxodos definitivos, uma vez que da sua condição faz parte o transitório e este conceito inclui a ideia de movimento – trânsito – e a de temporalidade, entrada e êxodo desta existência pela inclusividade numa família, numa região, num mundo, num cosmos) e saem de cena, dentro de mecanismos de caução e de verosímil, onde sempre há explicações mínimas e um fundo narrativo prévio a montante do narrado (n’O Processo, nem Joseph K. [nem o leitor!] chega a perceber ou a vislumbrar um fio explicativo sobre a natureza da acusação que impende sobre si), e onde a função catártica de algum modo se consuma.

Pelo contrário, em Kafka, as narrativas aprisionam os protagonistas, semeiam o estranhamento e a rejeição daqueles pela instância ‘leitor’ e além de se não vislumbrar consumação para a catarse iniciada, mas um seu estado, embora processual, suspensivo contínuo, penetra-se num território em permanente estado de insólita e pesada deriva. Nestas narrativas tudo nos provoca e desestabiliza desde o âmago relativamente ao nosso conceito de existência e vida em sociedade, aplicando-se, por isso mesmo, perfeitamente à leitura do pensamento (vertido e reconvertido em narratividade) de Kafka o que Ernesto Sampaio (1987) diz da leitura do pensamento de Walter Benjamin, em prefácio ao Kafka benjaminiano:

«... ao mesmo tempo testemunho e ilustração de uma vida que adquiriu conscientemente a mais rematada forma de ruína, é um «olhar» que nos interpela com força».

Qual a utilidade de um texto onde a possibilidade de pausa contemplativa não existe, onde o movimento absorve todas as energias, não apenas dos protagonistas (Karl Rossmann, em América, Gregor Samsa, em A Metamorfose, K., em O Castelo, por exemplo) mas também do leitor, e onde os poderes (mediados burocraticamente ou burocráticos eles mesmos) comprimem o indivíduo que só se lhes adapta obediente para adiar quaisquer temidas consequências? Este olhar tão nu e cru, destituído de paliativos, sobre todo um colete de forças invisível, urdido a partir de cima, conformando as massas a caminhos de consumo e ao consumo de ideias pré-fabricadas, asfixiando a pessoa, oprimindo-a, gerando nela uma dormência e uma desconfiança a que nada pode dar tréguas, pode ler-se em muitos textos kafkianos, nas suas cartas e também nas últimas linhas do Diário, já quase no final da sua vida:

«O consolo seria somente: acontece, quer queiras, quer não. E o que tu queres ajuda mesmo muito pouco. Mais do que consolo é: também tu tens armas».

Minando, desde a raiz, os mecanismos de domínio das massas acríticas, submissas e crédulas perante os poderes políticos mais desumanos assim como uma cultura e uma lógica de obediência cega, não será estranho que o regime Nazi promovesse a queima pública de livros deste autor nem será estranho que outros regimes posteriores tivessem de olhar com desconforto e insegurança para textos tão subversivos e subversivos porque precisamente também na linha do útil, do necessário e do urgente. Obviamente que não interessa no que Kafka pensou politicamente ou se sequer pensou a este nível. O que interessa perceber é que mesmo vertendo na língua literária a sua experiência de confinamento profissional, de evitamento e fuga da mulher-vinculação-compromisso, de constrangimento perante os poderes, fossem eles quais fossem, Kafka arrolou todas as realidades e todos os contextos possíveis no nosso mundo para a sua esfera e operou simultaneamente o inverso.

7 comentários:

Poante C,") disse...

from denmark

Jess-iE disse...

Life is wonderful,
Love is beautiful,
But if one day,
Everything fades away,
Will you take all your chances,
And redeem all the loss,
Will you be able to stand up,
And be able to look up,
and be strong,
Life is not perfect,
That's why everyone complains,
Because life's not like what they expect,
But if your life's perfect,
If you have nothing to anticipate,
If everything's under your control,
Will your life still be considered as 'life'?

Forgive me for writing this nonsense but I'm just feeling like doing so.

linfoma_a-escrota disse...

hej skat!

o que mais me sempre abismou perante toda a sua obra, que li na integra, apesar de muitas gente dizer ke é enfadona, circular ou derrotista foi sempre a consciência que o K. tem de haver uma força exterior que o domina e contra o qual ele luta arduamente mas nunca o suficiente, força essa que apesar da fealdade e da injustiça que emana, jamais K. a põe em questão, existirá sempre.

BullHorse disse...

Joshua friend, I afternoon to answer your comment on my blog, not the language, since today translators are immediate, but I manage my time so disorderly.
I appreciate your visit and leaves you a kiss.
Cata.

Rui Caetano disse...

Li algumas obras do nosso Kafka e aquela lentidão envolvia-nos num mistério e numa querer saber o fim de tudo aquilo. A sua obra é de uma qualidade singular.

Anderson Fonseca disse...

adorei sua página e análise, por isto estou lhe convidando se desejar em participar de um comunidade brasileira de literatura que analisa o discurso de qualquer obra como também busca desestrtuar o discurso o blog é www.des-enredo.blogspot.com e o e-mail é luizdovalefon@hotmail.com

+- disse...

Hi, thanks! that's nice!
Também gosto de Franz Kafka, arte , conheço o grupo Amadeus e muitas coisas!