Sejam quais forem as técnicas de escrita que os psicólogos quiseram ver em Kafka (técnicas de psicodinâmica como a fusão do onírico com o real, e a catarse, isto é, a ab-reacção ou descarga de ideias ou emoções na sua forma original, que se libertam do inconsciente para o consciente), o escritor fala de nós, tendo a si mesmo como ponto de partida. Quem surge nos seus textos somos nós e a nossa forma tortuosa de pensar.
A realidade quotidiana obriga-nos a ver que as mais comuns ou vulgares psicopatologias são congénitas à nossa espécie porque o efeito de uns sobre os outros, desde o momento da concepção, passando pelo clima gestante, levando em conta alguma informação genética, se repercute em actos e tendências que de um modo ou de outro se actualizarão posteriormente. É inútil disfarçar como é ténue a fronteira, a linha de equilíbrio, por onde precária e oscilantemente circulam os chamados sãos quando comparados com os outros. A ira, impulsividade devastadora, repousa não demasiadamente subterrânea no coração do cidadão aparentemente anódino e quando a conjuntura o favorece, quando correm impunes e escudados (pela guerra ou por um statu quo repressivo, com um dictat agressivo) qualquer espécie de caça às bruxas, qualquer purga de opositores políticos, qualquer banho de sangue, qualquer louca carnificina se desencadeia.
O que varia e o que nos segrega é a graduação da demência ou da propensão para ela. A historia e o quotidiano documentam casos sublimados pela arte ou pelo crime, dá conta das situações de agudizamento por deformação ou propensão genética, testemunha as situações integradas na vida quotidiana, porque residuais, portanto, sob aparente controlo.
Se em Kafka não se coloca o problema do psíquico, pois na sua obra nada se psicologiza nem, nele, psicologizar está em causa e se, por outro lado, a dimensão social desaparece nas interpretações psicanalíticas, porque o que conta é a dimensão individual e subjectivam, Kafka, construindo narrativas onde os protagonistas se defrontam com sistemas maiores que eles e de que se procuram defender, embora em vão, vê ainda a alienação do homem submerso nas contradições oprimentes da sociedade. Com ele a construção e a desconstrução andam em paralelo, por isso mesmo nele vemos o discurso corrosivo e negador de muitas das coisas que desejamos ter por adquiridas e com cuja posse nos iludimos: a paz, a possibilidade da felicidade.
É justamente aí que se coloca o problema da escrita para o autor como emanação dos seus conflitos. Muito luminosamente viu-o Vilas-Boas (1984), ao tratar da questão da esperança, em (e para além de) Kafka:
«a esperança encontra-se na tentativa – sempre gorada – de chegar a uma síntese dos elementos da polaridade que marcaram a sua vida: por um lado, a literatura, que implica o isolamento, a autodestruição como ser social; por outro lado, a vida social, a procura da mulher, do lar, de uma certa estabilidade. O trajecto de Kafka é marcado por uma luta entre estes dois aspectos; ele foi incapaz de se decidir, foi o «hesitante por excelência», nas palavras de Uytterspot. Na Carta ao Pai, afirma que a escrita lhe aparece «na infância como ideia, mais tarde como esperança, ainda mais tarde muitas vezes como desespero». Em carta a Robert Klopstok, Kafka refere o trajecto do Homem como estando num caminho que vai dar a um segundo, que por sua vez vai dar a um terceiro, e assim por diante – e o caminho certo não surge, mantendo-se permanentemente na «insegurança, mas também entregue à variedade incompreensivelmente bela, sendo a concretização das esperanças, e especialmente de tais esperanças, o sempre inesperado, mas por isso mesmo o milagre sempre possível».
Partindo de si e chegando ao Homem, Kafka tem a experiência de não saber sair por não haver saída. Por mais que o indivíduo pense, como e que sentido atribuir a esta vida? Na sua maior parte, os textos kafkianos não se situam num campo a-histórico ou a-social: nos romances encontramos a pequena burguesia, ainda a nossa sociedade e não há possibilidade de lhes tirar a carga crítica muito concreta que possuem. Ancorados ao tempo e à realidade social, os seus textos seguem dentro de uma tradição de apresentação do mundo como labirinto, onde o traço essencial é a ausência de chão e a falta de orientação.
Por absorver todas as dimensões da escrita kafkiana, o Capítulo nono de O Processo permite que nele possamos ver o melhor corte seccional possível de toda a obra do autor, nas suas marcas obsessivas e obsidiantes, pois em estado permanente de cerco e de assédio de si a si mesmo. Devemos tomar em linha de conta o contexto de emergência de O Processo que, conforme acentua Luis Izquierdo, foi iniciado quando se mudou para a azinhaga Bilek, onde pela primeira vez, aos 31 anos, Kafka tem quarto próprio.
Se na Catedral Joseph K. sente uma nostálgica falta dos sons do órgão, que permanece silencioso, enquanto o padre se preparava para deflagrar uma suposta pregação, inversamente na sua vida concreta, Kafka tem de mudar de casa com frequência, porque os ruídos o incomodam, facto a que se refere frequentemente na obra a partir dos primeiros êxitos absolutos, como no caso de A Metamorfose. O romance é publicado em 1925, e é efectivamente o mais comentado do autor, sendo também um dos textos que mais influíram na literatura posterior. O destino do homem, normalizado e domado por uma burocracia cega e desumana, músculo de esmagar indiscriminadamente, de, sem problemas de consciência, espezinhar o indivíduo e as suas veleidades, encontra nestas páginas um reflexo implacável que tem as suas raízes nas experiências do autor.
A realidade quotidiana obriga-nos a ver que as mais comuns ou vulgares psicopatologias são congénitas à nossa espécie porque o efeito de uns sobre os outros, desde o momento da concepção, passando pelo clima gestante, levando em conta alguma informação genética, se repercute em actos e tendências que de um modo ou de outro se actualizarão posteriormente. É inútil disfarçar como é ténue a fronteira, a linha de equilíbrio, por onde precária e oscilantemente circulam os chamados sãos quando comparados com os outros. A ira, impulsividade devastadora, repousa não demasiadamente subterrânea no coração do cidadão aparentemente anódino e quando a conjuntura o favorece, quando correm impunes e escudados (pela guerra ou por um statu quo repressivo, com um dictat agressivo) qualquer espécie de caça às bruxas, qualquer purga de opositores políticos, qualquer banho de sangue, qualquer louca carnificina se desencadeia.
O que varia e o que nos segrega é a graduação da demência ou da propensão para ela. A historia e o quotidiano documentam casos sublimados pela arte ou pelo crime, dá conta das situações de agudizamento por deformação ou propensão genética, testemunha as situações integradas na vida quotidiana, porque residuais, portanto, sob aparente controlo.
Se em Kafka não se coloca o problema do psíquico, pois na sua obra nada se psicologiza nem, nele, psicologizar está em causa e se, por outro lado, a dimensão social desaparece nas interpretações psicanalíticas, porque o que conta é a dimensão individual e subjectivam, Kafka, construindo narrativas onde os protagonistas se defrontam com sistemas maiores que eles e de que se procuram defender, embora em vão, vê ainda a alienação do homem submerso nas contradições oprimentes da sociedade. Com ele a construção e a desconstrução andam em paralelo, por isso mesmo nele vemos o discurso corrosivo e negador de muitas das coisas que desejamos ter por adquiridas e com cuja posse nos iludimos: a paz, a possibilidade da felicidade.
É justamente aí que se coloca o problema da escrita para o autor como emanação dos seus conflitos. Muito luminosamente viu-o Vilas-Boas (1984), ao tratar da questão da esperança, em (e para além de) Kafka:
«a esperança encontra-se na tentativa – sempre gorada – de chegar a uma síntese dos elementos da polaridade que marcaram a sua vida: por um lado, a literatura, que implica o isolamento, a autodestruição como ser social; por outro lado, a vida social, a procura da mulher, do lar, de uma certa estabilidade. O trajecto de Kafka é marcado por uma luta entre estes dois aspectos; ele foi incapaz de se decidir, foi o «hesitante por excelência», nas palavras de Uytterspot. Na Carta ao Pai, afirma que a escrita lhe aparece «na infância como ideia, mais tarde como esperança, ainda mais tarde muitas vezes como desespero». Em carta a Robert Klopstok, Kafka refere o trajecto do Homem como estando num caminho que vai dar a um segundo, que por sua vez vai dar a um terceiro, e assim por diante – e o caminho certo não surge, mantendo-se permanentemente na «insegurança, mas também entregue à variedade incompreensivelmente bela, sendo a concretização das esperanças, e especialmente de tais esperanças, o sempre inesperado, mas por isso mesmo o milagre sempre possível».
Partindo de si e chegando ao Homem, Kafka tem a experiência de não saber sair por não haver saída. Por mais que o indivíduo pense, como e que sentido atribuir a esta vida? Na sua maior parte, os textos kafkianos não se situam num campo a-histórico ou a-social: nos romances encontramos a pequena burguesia, ainda a nossa sociedade e não há possibilidade de lhes tirar a carga crítica muito concreta que possuem. Ancorados ao tempo e à realidade social, os seus textos seguem dentro de uma tradição de apresentação do mundo como labirinto, onde o traço essencial é a ausência de chão e a falta de orientação.
Por absorver todas as dimensões da escrita kafkiana, o Capítulo nono de O Processo permite que nele possamos ver o melhor corte seccional possível de toda a obra do autor, nas suas marcas obsessivas e obsidiantes, pois em estado permanente de cerco e de assédio de si a si mesmo. Devemos tomar em linha de conta o contexto de emergência de O Processo que, conforme acentua Luis Izquierdo, foi iniciado quando se mudou para a azinhaga Bilek, onde pela primeira vez, aos 31 anos, Kafka tem quarto próprio.
Se na Catedral Joseph K. sente uma nostálgica falta dos sons do órgão, que permanece silencioso, enquanto o padre se preparava para deflagrar uma suposta pregação, inversamente na sua vida concreta, Kafka tem de mudar de casa com frequência, porque os ruídos o incomodam, facto a que se refere frequentemente na obra a partir dos primeiros êxitos absolutos, como no caso de A Metamorfose. O romance é publicado em 1925, e é efectivamente o mais comentado do autor, sendo também um dos textos que mais influíram na literatura posterior. O destino do homem, normalizado e domado por uma burocracia cega e desumana, músculo de esmagar indiscriminadamente, de, sem problemas de consciência, espezinhar o indivíduo e as suas veleidades, encontra nestas páginas um reflexo implacável que tem as suas raízes nas experiências do autor.
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