«... vid'io lo Minotauro far cotale;
e quello accorto gridò: «Corri al varco:
mentre ch'e' 'nfuria, è buon che tu ti cale».
(A Divina Comédia, Canto XI, O Inferno, vv. 25-27)
Talvez aparente ser praticamente impossível dizer o novo quando se acede à leitura e se faz a interpretação de Kafka. E isto não só por não se poder escapar a conclusões pacíficas mesmo se controversas sobre ele, conclusões em todo o caso sempre passíveis de leituras pluriangulares, tratando-se de um autor áspero, cujos textos esfíngicos exigem árduas lutas de que se sai sempre perdedor e devorado e nunca edipianamente aureolado, mas sobretudo por ser já vasto e de qualidade apreciável quanto sobre ele tem sido escrito. É impossível escapar, lendo Kafka, ao peso do silêncio e às coordenadas existenciais nas suas narrativas de heróis átonos. Se não fosse obviamente possível alimentar a expectativa, e por vezes confirmá-la, de que se pode acrescentar algumas coisas novas e inteligentes sobre a paradigmática imbricação unitária autor-obra, mais ninguém se aventuraria a escrever uma linha sobre um e outra, o que não acontece.
O mundo kafkiano ― a complexidade nele entretecida pelo esquizofrénico e pelo paranóico ditados por (ou resultantes de) uma naturalmente egoísta entrega à escrita, lá, onde o plano onírico se reconverte e refunde no literário, mundo sobre o qual o mesmo Kafka fosse talvez o que menos sabia ―, sempre se prestará a leituras novas, com energia inaudita. Nelas, o novo consistirá afinal e precisamente na explicitação, ainda que a partir dos destroços que bóiam à superfície dos seus textos ― dizia Hugo von Hofmannsthal que a profundidade devia ocultar-se, e, quando lhe perguntavam onde, respondia que à superfície ―, das relações entretecidas pelo ontológico e o poético e o modo como este último, obviamente em sentido lato, pelo menos tal como a Teoria da Literatura e os seus críticos têm manejado tal conceito, partilha com o primeiro uma natureza, sob os pontos de vista estrutural, temático e existencial, marcada pelo entrópico e o centrípeto, o que é, como tom absoluto e geral na totalidade de uma obra, raro em literatura.
Raro em literatura, para se não dizer ímpar, porque genericamente a construção literária das narrativas mais ou menos clássicas e mais ou menos intemporais faz concebíveis diversas vias êxodais, isto é, pontos por onde as personagens entram (entrar é sempre sair de algum lugar para entrar nalgum outro, nunca havendo para o ser humano êxodos definitivos, uma vez que da sua condição faz parte o transitório e este conceito inclui a ideia de movimento – trânsito – e a de temporalidade, entrada e êxodo desta existência pela inclusividade numa família, numa região, num mundo, num cosmos) e saem de cena, dentro de mecanismos de caução e de verosímil, onde sempre há explicações mínimas e um fundo narrativo prévio a montante do narrado (n’O Processo, nem Joseph K. [nem o leitor!] chega a perceber ou a vislumbrar um fio explicativo sobre a natureza da acusação que impende sobre si), e onde a função catártica de algum modo se consuma.
Pelo contrário, em Kafka, as narrativas aprisionam os protagonistas, semeiam o estranhamento e a rejeição daqueles pela instância ‘leitor’ e além de se não vislumbrar consumação para a catarse iniciada, mas um seu estado, embora processual, suspensivo contínuo, penetra-se num território em permanente estado de insólita e pesada deriva. Nestas narrativas tudo nos provoca e desestabiliza desde o âmago relativamente ao nosso conceito de existência e vida em sociedade, aplicando-se, por isso mesmo, perfeitamente à leitura do pensamento (vertido e reconvertido em narratividade) de Kafka o que Ernesto Sampaio (1987) diz da leitura do pensamento de Walter Benjamin, em prefácio ao Kafka benjaminiano:
«... ao mesmo tempo testemunho e ilustração de uma vida que adquiriu conscientemente a mais rematada forma de ruína, é um «olhar» que nos interpela com força».
Qual a utilidade de um texto onde a possibilidade de pausa contemplativa não existe, onde o movimento absorve todas as energias, não apenas dos protagonistas (Karl Rossmann, em América, Gregor Samsa, em A Metamorfose, K., em O Castelo, por exemplo) mas também do leitor, e onde os poderes (mediados burocraticamente ou burocráticos eles mesmos) comprimem o indivíduo que só se lhes adapta obediente para adiar quaisquer temidas consequências? Este olhar tão nu e cru, destituído de paliativos, sobre todo um colete de forças invisível, urdido a partir de cima, conformando as massas a caminhos de consumo e ao consumo de ideias pré-fabricadas, asfixiando a pessoa, oprimindo-a, gerando nela uma dormência e uma desconfiança a que nada pode dar tréguas, pode ler-se em muitos textos kafkianos, nas suas cartas e também nas últimas linhas do Diário, já quase no final da sua vida:
«O consolo seria somente: acontece, quer queiras, quer não. E o que tu queres ajuda mesmo muito pouco. Mais do que consolo é: também tu tens armas».
e quello accorto gridò: «Corri al varco:
mentre ch'e' 'nfuria, è buon che tu ti cale».
(A Divina Comédia, Canto XI, O Inferno, vv. 25-27)
Talvez aparente ser praticamente impossível dizer o novo quando se acede à leitura e se faz a interpretação de Kafka. E isto não só por não se poder escapar a conclusões pacíficas mesmo se controversas sobre ele, conclusões em todo o caso sempre passíveis de leituras pluriangulares, tratando-se de um autor áspero, cujos textos esfíngicos exigem árduas lutas de que se sai sempre perdedor e devorado e nunca edipianamente aureolado, mas sobretudo por ser já vasto e de qualidade apreciável quanto sobre ele tem sido escrito. É impossível escapar, lendo Kafka, ao peso do silêncio e às coordenadas existenciais nas suas narrativas de heróis átonos. Se não fosse obviamente possível alimentar a expectativa, e por vezes confirmá-la, de que se pode acrescentar algumas coisas novas e inteligentes sobre a paradigmática imbricação unitária autor-obra, mais ninguém se aventuraria a escrever uma linha sobre um e outra, o que não acontece.
O mundo kafkiano ― a complexidade nele entretecida pelo esquizofrénico e pelo paranóico ditados por (ou resultantes de) uma naturalmente egoísta entrega à escrita, lá, onde o plano onírico se reconverte e refunde no literário, mundo sobre o qual o mesmo Kafka fosse talvez o que menos sabia ―, sempre se prestará a leituras novas, com energia inaudita. Nelas, o novo consistirá afinal e precisamente na explicitação, ainda que a partir dos destroços que bóiam à superfície dos seus textos ― dizia Hugo von Hofmannsthal que a profundidade devia ocultar-se, e, quando lhe perguntavam onde, respondia que à superfície ―, das relações entretecidas pelo ontológico e o poético e o modo como este último, obviamente em sentido lato, pelo menos tal como a Teoria da Literatura e os seus críticos têm manejado tal conceito, partilha com o primeiro uma natureza, sob os pontos de vista estrutural, temático e existencial, marcada pelo entrópico e o centrípeto, o que é, como tom absoluto e geral na totalidade de uma obra, raro em literatura.
Raro em literatura, para se não dizer ímpar, porque genericamente a construção literária das narrativas mais ou menos clássicas e mais ou menos intemporais faz concebíveis diversas vias êxodais, isto é, pontos por onde as personagens entram (entrar é sempre sair de algum lugar para entrar nalgum outro, nunca havendo para o ser humano êxodos definitivos, uma vez que da sua condição faz parte o transitório e este conceito inclui a ideia de movimento – trânsito – e a de temporalidade, entrada e êxodo desta existência pela inclusividade numa família, numa região, num mundo, num cosmos) e saem de cena, dentro de mecanismos de caução e de verosímil, onde sempre há explicações mínimas e um fundo narrativo prévio a montante do narrado (n’O Processo, nem Joseph K. [nem o leitor!] chega a perceber ou a vislumbrar um fio explicativo sobre a natureza da acusação que impende sobre si), e onde a função catártica de algum modo se consuma.
Pelo contrário, em Kafka, as narrativas aprisionam os protagonistas, semeiam o estranhamento e a rejeição daqueles pela instância ‘leitor’ e além de se não vislumbrar consumação para a catarse iniciada, mas um seu estado, embora processual, suspensivo contínuo, penetra-se num território em permanente estado de insólita e pesada deriva. Nestas narrativas tudo nos provoca e desestabiliza desde o âmago relativamente ao nosso conceito de existência e vida em sociedade, aplicando-se, por isso mesmo, perfeitamente à leitura do pensamento (vertido e reconvertido em narratividade) de Kafka o que Ernesto Sampaio (1987) diz da leitura do pensamento de Walter Benjamin, em prefácio ao Kafka benjaminiano:
«... ao mesmo tempo testemunho e ilustração de uma vida que adquiriu conscientemente a mais rematada forma de ruína, é um «olhar» que nos interpela com força».
Qual a utilidade de um texto onde a possibilidade de pausa contemplativa não existe, onde o movimento absorve todas as energias, não apenas dos protagonistas (Karl Rossmann, em América, Gregor Samsa, em A Metamorfose, K., em O Castelo, por exemplo) mas também do leitor, e onde os poderes (mediados burocraticamente ou burocráticos eles mesmos) comprimem o indivíduo que só se lhes adapta obediente para adiar quaisquer temidas consequências? Este olhar tão nu e cru, destituído de paliativos, sobre todo um colete de forças invisível, urdido a partir de cima, conformando as massas a caminhos de consumo e ao consumo de ideias pré-fabricadas, asfixiando a pessoa, oprimindo-a, gerando nela uma dormência e uma desconfiança a que nada pode dar tréguas, pode ler-se em muitos textos kafkianos, nas suas cartas e também nas últimas linhas do Diário, já quase no final da sua vida:
«O consolo seria somente: acontece, quer queiras, quer não. E o que tu queres ajuda mesmo muito pouco. Mais do que consolo é: também tu tens armas».
Minando, desde a raiz, os mecanismos de domínio das massas acríticas, submissas e crédulas perante os poderes políticos mais desumanos assim como uma cultura e uma lógica de obediência cega, não será estranho que o regime Nazi promovesse a queima pública de livros deste autor nem será estranho que outros regimes posteriores tivessem de olhar com desconforto e insegurança para textos tão subversivos e subversivos porque precisamente também na linha do útil, do necessário e do urgente. Obviamente que não interessa no que Kafka pensou politicamente ou se sequer pensou a este nível. O que interessa perceber é que mesmo vertendo na língua literária a sua experiência de confinamento profissional, de evitamento e fuga da mulher-vinculação-compromisso, de constrangimento perante os poderes, fossem eles quais fossem, Kafka arrolou todas as realidades e todos os contextos possíveis no nosso mundo para a sua esfera e operou simultaneamente o inverso.