FRANZ KAFKA: ADVERSATIVIDADE E INTERROGAÇÃO

Entrar e sair do Capítulo Nono de O Processo — Um Fio de Ariana Interpretativo

sábado, 1 de setembro de 2007

1. INTRODUÇÃO: SOB A ESFERA DA ENTROPIA

«... vid'io lo Minotauro far cotale;
e quello accorto gridò: «Corri al varco:
mentre ch'e' 'nfuria, è buon che tu ti cale».


(A Divina Comédia, Canto XI, O Inferno, vv. 25-27)


Talvez aparente ser praticamente impossível dizer o novo quando se acede à leitura e se faz a interpretação de Kafka. E isto não só por não se poder escapar a conclusões pacíficas mesmo se controversas sobre ele, conclusões em todo o caso sempre passíveis de leituras pluriangulares, tratando-se de um autor áspero, cujos textos esfíngicos exigem árduas lutas de que se sai sempre perdedor e devorado e nunca edipianamente aureolado, mas sobretudo por ser já vasto e de qualidade apreciável quanto sobre ele tem sido escrito. É impossível escapar, lendo Kafka, ao peso do silêncio e às coordenadas existenciais nas suas narrativas de heróis átonos. Se não fosse obviamente possível alimentar a expectativa, e por vezes confirmá-la, de que se pode acrescentar algumas coisas novas e inteligentes sobre a paradigmática imbricação unitária autor-obra, mais ninguém se aventuraria a escrever uma linha sobre um e outra, o que não acontece.

O mundo kafkiano ― a complexidade nele entretecida pelo esquizofrénico e pelo paranóico ditados por (ou resultantes de) uma naturalmente egoísta entrega à escrita, lá, onde o plano onírico se reconverte e refunde no literário, mundo sobre o qual o mesmo Kafka fosse talvez o que menos sabia ―, sempre se prestará a leituras novas, com energia inaudita. Nelas, o novo consistirá afinal e precisamente na explicitação, ainda que a partir dos destroços que bóiam à superfície dos seus textos ― dizia Hugo von Hofmannsthal que a profundidade devia ocultar-se, e, quando lhe perguntavam onde, respondia que à superfície ―, das relações entretecidas pelo ontológico e o poético e o modo como este último, obviamente em sentido lato, pelo menos tal como a Teoria da Literatura e os seus críticos têm manejado tal conceito, partilha com o primeiro uma natureza, sob os pontos de vista estrutural, temático e existencial, marcada pelo entrópico e o centrípeto, o que é, como tom absoluto e geral na totalidade de uma obra, raro em literatura.

Raro em literatura, para se não dizer ímpar, porque genericamente a construção literária das narrativas mais ou menos clássicas e mais ou menos intemporais faz concebíveis diversas vias êxodais, isto é, pontos por onde as personagens entram (entrar é sempre sair de algum lugar para entrar nalgum outro, nunca havendo para o ser humano êxodos definitivos, uma vez que da sua condição faz parte o transitório e este conceito inclui a ideia de movimento – trânsito – e a de temporalidade, entrada e êxodo desta existência pela inclusividade numa família, numa região, num mundo, num cosmos) e saem de cena, dentro de mecanismos de caução e de verosímil, onde sempre há explicações mínimas e um fundo narrativo prévio a montante do narrado (n’O Processo, nem Joseph K. [nem o leitor!] chega a perceber ou a vislumbrar um fio explicativo sobre a natureza da acusação que impende sobre si), e onde a função catártica de algum modo se consuma.

Pelo contrário, em Kafka, as narrativas aprisionam os protagonistas, semeiam o estranhamento e a rejeição daqueles pela instância ‘leitor’ e além de se não vislumbrar consumação para a catarse iniciada, mas um seu estado, embora processual, suspensivo contínuo, penetra-se num território em permanente estado de insólita e pesada deriva. Nestas narrativas tudo nos provoca e desestabiliza desde o âmago relativamente ao nosso conceito de existência e vida em sociedade, aplicando-se, por isso mesmo, perfeitamente à leitura do pensamento (vertido e reconvertido em narratividade) de Kafka o que Ernesto Sampaio (1987) diz da leitura do pensamento de Walter Benjamin, em prefácio ao Kafka benjaminiano:

«... ao mesmo tempo testemunho e ilustração de uma vida que adquiriu conscientemente a mais rematada forma de ruína, é um «olhar» que nos interpela com força».

Qual a utilidade de um texto onde a possibilidade de pausa contemplativa não existe, onde o movimento absorve todas as energias, não apenas dos protagonistas (Karl Rossmann, em América, Gregor Samsa, em A Metamorfose, K., em O Castelo, por exemplo) mas também do leitor, e onde os poderes (mediados burocraticamente ou burocráticos eles mesmos) comprimem o indivíduo que só se lhes adapta obediente para adiar quaisquer temidas consequências? Este olhar tão nu e cru, destituído de paliativos, sobre todo um colete de forças invisível, urdido a partir de cima, conformando as massas a caminhos de consumo e ao consumo de ideias pré-fabricadas, asfixiando a pessoa, oprimindo-a, gerando nela uma dormência e uma desconfiança a que nada pode dar tréguas, pode ler-se em muitos textos kafkianos, nas suas cartas e também nas últimas linhas do Diário, já quase no final da sua vida:

«O consolo seria somente: acontece, quer queiras, quer não. E o que tu queres ajuda mesmo muito pouco. Mais do que consolo é: também tu tens armas».

Minando, desde a raiz, os mecanismos de domínio das massas acríticas, submissas e crédulas perante os poderes políticos mais desumanos assim como uma cultura e uma lógica de obediência cega, não será estranho que o regime Nazi promovesse a queima pública de livros deste autor nem será estranho que outros regimes posteriores tivessem de olhar com desconforto e insegurança para textos tão subversivos e subversivos porque precisamente também na linha do útil, do necessário e do urgente. Obviamente que não interessa no que Kafka pensou politicamente ou se sequer pensou a este nível. O que interessa perceber é que mesmo vertendo na língua literária a sua experiência de confinamento profissional, de evitamento e fuga da mulher-vinculação-compromisso, de constrangimento perante os poderes, fossem eles quais fossem, Kafka arrolou todas as realidades e todos os contextos possíveis no nosso mundo para a sua esfera e operou simultaneamente o inverso.

2. ADVERSATIVIDADE COMO TRADUÇÃO RETÓRICA DO PARANÓICO-ESQUIZOFRÉNICO?

«tudo o que não é literatura me aborrece e odeio porque (não) me perturba».
Kafka

As questões de fundo suscitadas pelas narrativas kafkianas desaguam na superfície e se os seus textos são nocturnos, se a sua obra é nocturna, isso terá de estar também necessariamente na forma. Falar em adversatividade e em interrogação em Kafka, conforme pretendo, embora vise remeter para processos retóricos (o uso absolutamente recorrente, reiterado, da conjunção coordenativa adversativa «aber», «mas», ou de conjunções e locuções conjuncionais equivalentes, por exemplo) e as suas interrogações inconsecutivas e inconsequentes no corpo textual, releva de pressupostos de base na mundividência kafkiana, uma mundividência sempre reconduzida à sua pessoa e ao seu contexto, ao seu problema e à sua história e apenas por isso, na medida em que se nucleariza em torno de si mesmo, se torna, por sua vez, reflexa da vida social ou dos mecanismos de aleatório e acaso da vida em geral. Indiferente à ideia de povo, o seu modo de estar foi por demais caracterizado como resultante em boa medida das suas circunstâncias particulares de judeu tiranizado pelo pai, e, como sintetiza o mesmo Ernesto Sampaio (1987):

«para quem era mais importante compreender a existência do que simplesmente viver» (...) «símil perfeito do animal do seu conto O Covil, a quem os breves contactos com o ar livre da floresta dão uma percepção da realidade que reduz a sonhos ou a sombras as criações do seu próprio espírito».

Mas também por se tratar o seu de um contexto criativo marcado por uma desolação conjuntural inevitável e que pode explicar-se como

«uma característica comum à maioria dos escritores alemães que escreveram em Praga ou sobre Praga, assim como a ironia com que se consideram a si próprios, deixando entrever um verdadeiro ódio ao eu, reflexo provável da desilusão mórbida causada pela atrofia das energias criadoras da velha Áustria, num sentimento que perdurou na parte alemã de Praga mesmo depois do Império se haver desfeito.»
(Ernesto Sampaio, 1987).

A escrita de Kafka, como observa Vilas-Boas (1984), acaba por ser

«a ficcionalização das suas interrogações. E interrogar é o primeiro passo para a mudança, como tal é um indício de esperança. Interrogar-se é tentar compreender os sistemas que dominam os homens e de que estes são duplamente vítimas: por um lado, pelos próprios mecanismos do sistema, por outros lado, pelas imagens interiorizadas que eles constróem sobre esse mesmo sistema».

Seja como for, quer pela dimensão labiríntica concedida ao texto, dimensão resultante do uso absoluto e crucial do «mas», instituindo oposições constantes e constantes correcções de orientação, quer pelas interrogações que sinalizam a desolação, (no texto kafkiano estamos no âmago de desassossegadas, perpétuas e bruscas confrontações entre sintagmas inteiros, e em que o leitor ele mesmo se confronta com a circularidade inter-conflituante dos pensamentos, das reflexões e decisões do protagonista), temos um narrador genericamente equi-sapiente relativamente às personagens, mas cujo desenho delas passa pelo paradoxo do movimento e da ancoragem a determinados objectivos provisórios e simultânea e imediatamente aos seus opostos. É assim enquanto ancorado a metas avulsas, impulsivas e vagas, longe de uma metodologia que privilegie a reflexão, que o protagonista Joseph K. se consome numa autofagia interior, num desgaste e dessoramento tais, que a morte aparece efectivamente como o ansiado remate, morrendo com o protagonista, o leitor, forçado partícipe do processo mortífero em que aquele se enreda ou é enredado.

Sinalização da sua rebeldia, em tensão obediente e surda, quanto à lógica de poder no local de trabalho, ao longo do romance e neste Capítulo Nono, Na Catedral, cada asserção em torno de Joseph K. apresenta um tópico sobre que se detém a sua reflexão e de imediato a sua contraditação. Este jogo é levado ao limite, ao longo da narrativa, conduzindo a que se fundam, num só plano, o conteúdo agónico do protagonista e a agónica estrutura textual labiríntica que o suporta, pressuposto este de relevância tal, que a luta entretecida no âmago de Joseph K. e a dimensão agónica da narrativa ela mesma, a partir de determinada altura nunca diz respeito tanto aos elementos oponentes que lhe são internos (outras personagens, a configuração do próprio enredo e os obstáculos nele inclusos, por exemplo), mas sobretudo às instâncias de oposição interiores ao próprio Joseph K., os mecanismos de suposição, de implicitação a partir de premissas tão válidas como erróneas, tão relevantes como irrelevantes de que, por desgaste e por medo, é acometido. Narrativamente, é sempre posto em relevo o estado de aflição de Joseph K. relativamente a todas as coisas, o medo de invasão e intrusão do seu espaço de trabalho perante a sua passividade derrotada e abúlica, e ao ensaiar Joseph K. quaisquer caminhos de fuga do que o angustia, o refúgio provisório possível só pode ser a auto-sugestão, algo que surpreendemos à cabeça deste capítulo nono, sobreposição de várias camadas de pesadelo enoveladas por dentro:

Cada hora que o faziam passar fora do banco era para ele motivo de preocupações; o tempo que actualmente passava no banco rendia-lhe muito menos que antigamente, passava várias horas em que mal conseguia fingir que trabalhava, mas, apesar de tudo, as suas preocupações eram maiores quando não estava no escritório. Julgava então ver o director-interino, que estivera sempre à espreita, entrar de vez em quando no seu gabinete, sentar-se à sua secretária, rebuscar os seus documentos, receber clientes aos quais K. estrava ligado desde há anos por sentimentos muito próximos da amizade, dar-lhes conselhos bem diferentes dos seus e talvez mesmo descobrir erros de cuja presença ameaçadora K. se dera sempre conta durante o trabalho mas que já não podia evitar.
(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §).

3. O CAPÍTULO NONO DE O PROCESSO CORTE SECCIONAL DA OBRA KAFKIANA

Sejam quais forem as técnicas de escrita que os psicólogos quiseram ver em Kafka (técnicas de psicodinâmica como a fusão do onírico com o real, e a catarse, isto é, a ab-reacção ou descarga de ideias ou emoções na sua forma original, que se libertam do inconsciente para o consciente), o escritor fala de nós, tendo a si mesmo como ponto de partida. Quem surge nos seus textos somos nós e a nossa forma tortuosa de pensar.

A realidade quotidiana obriga-nos a ver que as mais comuns ou vulgares psicopatologias são congénitas à nossa espécie porque o efeito de uns sobre os outros, desde o momento da concepção, passando pelo clima gestante, levando em conta alguma informação genética, se repercute em actos e tendências que de um modo ou de outro se actualizarão posteriormente. É inútil disfarçar como é ténue a fronteira, a linha de equilíbrio, por onde precária e oscilantemente circulam os chamados sãos quando comparados com os outros. A ira, impulsividade devastadora, repousa não demasiadamente subterrânea no coração do cidadão aparentemente anódino e quando a conjuntura o favorece, quando correm impunes e escudados (pela guerra ou por um statu quo repressivo, com um dictat agressivo) qualquer espécie de caça às bruxas, qualquer purga de opositores políticos, qualquer banho de sangue, qualquer louca carnificina se desencadeia.

O que varia e o que nos segrega é a graduação da demência ou da propensão para ela. A historia e o quotidiano documentam casos sublimados pela arte ou pelo crime, dá conta das situações de agudizamento por deformação ou propensão genética, testemunha as situações integradas na vida quotidiana, porque residuais, portanto, sob aparente controlo.

Se em Kafka não se coloca o problema do psíquico, pois na sua obra nada se psicologiza nem, nele, psicologizar está em causa e se, por outro lado, a dimensão social desaparece nas interpretações psicanalíticas, porque o que conta é a dimensão individual e subjectivam, Kafka, construindo narrativas onde os protagonistas se defrontam com sistemas maiores que eles e de que se procuram defender, embora em vão, vê ainda a alienação do homem submerso nas contradições oprimentes da sociedade. Com ele a construção e a desconstrução andam em paralelo, por isso mesmo nele vemos o discurso corrosivo e negador de muitas das coisas que desejamos ter por adquiridas e com cuja posse nos iludimos: a paz, a possibilidade da felicidade.

É justamente aí que se coloca o problema da escrita para o autor como emanação dos seus conflitos. Muito luminosamente viu-o Vilas-Boas (1984), ao tratar da questão da esperança, em (e para além de) Kafka:

«a esperança encontra-se na tentativa – sempre gorada – de chegar a uma síntese dos elementos da polaridade que marcaram a sua vida: por um lado, a literatura, que implica o isolamento, a autodestruição como ser social; por outro lado, a vida social, a procura da mulher, do lar, de uma certa estabilidade. O trajecto de Kafka é marcado por uma luta entre estes dois aspectos; ele foi incapaz de se decidir, foi o «hesitante por excelência», nas palavras de Uytterspot. Na Carta ao Pai, afirma que a escrita lhe aparece «na infância como ideia, mais tarde como esperança, ainda mais tarde muitas vezes como desespero». Em carta a Robert Klopstok, Kafka refere o trajecto do Homem como estando num caminho que vai dar a um segundo, que por sua vez vai dar a um terceiro, e assim por diante – e o caminho certo não surge, mantendo-se permanentemente na «insegurança, mas também entregue à variedade incompreensivelmente bela, sendo a concretização das esperanças, e especialmente de tais esperanças, o sempre inesperado, mas por isso mesmo o milagre sempre possível».

Partindo de si e chegando ao Homem, Kafka tem a experiência de não saber sair por não haver saída. Por mais que o indivíduo pense, como e que sentido atribuir a esta vida? Na sua maior parte, os textos kafkianos não se situam num campo a-histórico ou a-social: nos romances encontramos a pequena burguesia, ainda a nossa sociedade e não há possibilidade de lhes tirar a carga crítica muito concreta que possuem. Ancorados ao tempo e à realidade social, os seus textos seguem dentro de uma tradição de apresentação do mundo como labirinto, onde o traço essencial é a ausência de chão e a falta de orientação.

Por absorver todas as dimensões da escrita kafkiana, o Capítulo nono de O Processo permite que nele possamos ver o melhor corte seccional possível de toda a obra do autor, nas suas marcas obsessivas e obsidiantes, pois em estado permanente de cerco e de assédio de si a si mesmo. Devemos tomar em linha de conta o contexto de emergência de O Processo que, conforme acentua Luis Izquierdo, foi iniciado quando se mudou para a azinhaga Bilek, onde pela primeira vez, aos 31 anos, Kafka tem quarto próprio.
Se na Catedral Joseph K. sente uma nostálgica falta dos sons do órgão, que permanece silencioso, enquanto o padre se preparava para deflagrar uma suposta pregação, inversamente na sua vida concreta, Kafka tem de mudar de casa com frequência, porque os ruídos o incomodam, facto a que se refere frequentemente na obra a partir dos primeiros êxitos absolutos, como no caso de A Metamorfose. O romance é publicado em 1925, e é efectivamente o mais comentado do autor, sendo também um dos textos que mais influíram na literatura posterior. O destino do homem, normalizado e domado por uma burocracia cega e desumana, músculo de esmagar indiscriminadamente, de, sem problemas de consciência, espezinhar o indivíduo e as suas veleidades, encontra nestas páginas um reflexo implacável que tem as suas raízes nas experiências do autor.

4. O TEMA DA BUSCA EM KAFKA COMO UM TEMA PERVERTIDO

N’O Processo encontramos algo que é indiscutível em toda a obra de Kafka, marcas do que Steiner nota, interrogando-se, ao entrar no tratamento dos estudos temáticos, como um terceiro domínio da Literatura Comparada, e que é a ideia de que há apenas uma história perpetuamente retomada, um tema somente a dominar as literaturas ocidentais, desde as mais remotas e estruturadoras manifestações dos mitos helénicos às respectivas actualizações literárias posteriores:

«It has been argued that there is, as Robert Graves pronounced, ‘one story, and one story only’: that of ‘The Quest’ (...) Analysis, notably by Russian formalists and structural anthropologists, has confirmed the remarkable economy of motifs the recurrent, rule-bound techniques of narrative which prevail in mythologies, folk-tales, and the telling of stories in literature the world over

(Steiner: 1994).

Mas em Kafka, e concreta e exemplarmente n’O Processo, se se confirma a presença desta monovalência temática de fundo, ela constitui uma torção dos pólos do bem e do mal, que se fundem e confundem, e é, além de tudo, toda ela agónica, não tendo por recompensa quaisquer paliativos, quaisquer indícios de satisfação, vivendo, bem pelo contrário, da insatisfação e da hybris, isto é, do erro desencadeado e inestancável que conduzirá à morte, devorando absolutamente todas as hipóteses alternativas, ainda que a condicional ‘se’ seja um dos recursos inventivos da literatura mais fantásticos porque permite achar saídas, insuspeitos desfechos e sustentar lendas, não são em Kafka operativos, mas mero mediador retórico do à partida invalidado:

«It is, moreover, distinctly possible that the mechanics of theme and variation, essential to music, are incised also in language and representation. It may be that a ‘formulaic’ way of telling the same story differently – observe our Westerns – is an impulse of quasi-genetic force.»

(Steiner: 1994)

Destituída dos mais ténues vestígios de kalogagatya, a personagem kafkiana releva dessa construção de visões e de mundos onde se materializa aquilo a que Elias Canetti, no prefácio à edição das Cartas a Felice, refere como sendo uma fobia ao poder, sentido e exercido:

«... temendo o poder sob todas as suas formas, o verdadeiro objectivo da sua vida consistiu em evitá-lo igualmente sob todas as formas, pressentindo-o, descobrindo-o, nomeando-o e representando-o em toda a parte onde os outros não se apercebem dele».
O capítulo nono de O Processo pode ser visto como o ponto crítico do romance, pois a misteriosa ida à Catedral de Praga e o diálogo com o padre é a chegada a um auxílio ou ao seu completo oposto. Atravessar as narrativas kafkianas representa um trânsito pelo espinhoso e antecipa a noção de que se trata de um espaço de passagem do nada para coisa alguma.

5. LEITOR VS. TEXTO: UMA LUTA DESPROPORCIONAL

Kafka é e será sempre difícil: em face das suas narrativas desencadeia-se um combate de que o leitor terá de sair derrotado, mas somente porque a luta é desigual: o texto possui a impenetrabilidade de uma Tróia sitiada e não há estratagemas ulisseus que bastem ou ousadia e valor quanto ao cerco que se lhe monte. Mas é justamente por isso que prevalece. Nos seus textos e, como temos visto e exemplificado, também no capítulo nono de O Processo, as inúmeras questões levantadas pelo protagonista não têm resposta e se para elas há algo que se assemelhe a uma chave, ela pode estar na própria estrutura que vive precisamente do paradoxo e da suspensão, mas pode também não estar. Do que é necessário ter consciência é que as nossas leituras circulam e laboram em torno de sucessivos «não sabemos». Pode dizer-se muito e sempre se disse efectivamente muito sobre Kafka, mas é necessário que se reserve suficiente espaço para o que não sabemos.

Muito do que se escreveu criticamente sobre ele, aliás, embora globalmente válido e interessante do ponto de vista documental e crítico, foi por vezes contaminado por dogmatismos ideológicos e marcado pelas tendências estéticas a eles ancoradas de um século tão convulsionado como o anterior. Por isso, de certa forma, no acesso directo ao texto kafkiano, sem mediações críticas prévias, a não ser a mediação mínima tradutória, tudo permanece em aberto e julgo que poderei mostrar alguns exemplos e ideias, uns e outras, espero, não inteiramente devedores nem decorrentes, muito menos servis, do muito que já foi escrito.

Estilística e tematicamente radiografado por inúmeros estudiosos ao longo de boa parte do século XX, Kafka ganhou ainda maior e reconhecida importância a partir da sua redescoberta, divulgação e valorização, começando pelo papel fundamental do seu amigo Max Brod, mas também de Walter Benjamin, que, por assim dizer, se lhe assemelhou e às suas personagens centrais, tendo sido ele mesmo, tal como o herói kafkiano, alguém que «vagueia no meio dos seus concidadãos como um anjo caído ou um exilado clandestino» (Ernesto Sampaio, 1987). A sua grandeza deve-se, como diz ainda Sampaio, em prefácio ao Kafka benjaminiano, «à indissolúvel unidade do homem e da obra, ambos marcados pela mesma e dupla problemática: (...) a sua inaptidão para estar neste mundo e a rejeição de todo o poder, seja ele qual for.» (Ernesto Sampaio, 1987).

6. SÍNTESE DE O PROCESSO

A narração verte-se em dez capítulos, que se apresentam como quadros quase estanques, sucedendo-se por vezes bruscamente, e onde os estados de alma de Joseph K. ou os pressentimentos de uma catástrofe iminente sobre si se acentuam. Os capítulos marcam numa gradação e tensão crescentes, o desespero de Joseph K até à culminância derradeira dessa mesma catástrofe. Joseph K.

Empregado bancário, é preso uma manhã sem motivo especial. O insólito da detenção, acentuado precisamente pela absoluta simplicidade descritiva, desconcerta a personagem, que imediatamente se multiplica em conjecturas. Gozando, apesar de detido, de uma liberdade precária e provisória, procura embrenhar-se no sistema e descobrir a natureza da sua acusação e os seus agentes. É Titorelli quem explica a Joseph K. a questão das absolvições, de que há três tipos: o primeiro é a absolvição definitiva – mas o pintor não conhece caso nenhum em que ela tivesse sido concedida, sabe apenas que consta que já tenham ocorrido. No presente narrado, só há dois tipos: a absolvição aparente e o adiamento. Isto é, o problema da existência da culpa no presente deixa de se colocar – ela existe sempre, ainda que quase nada seja adiantado ao leitor no sentido da sua definição. A evolução também aqui surge em sentido negativo. No seu trajecto, Joseph K. é movido pelo desejo de resolver a situação em que se vê envolvido, como se depreende das estratégias que elabora – vários factores externos, mas sobretudo internos, impedem-no de ver que age circularmente. No final do romance, há uma passagem que é muito importante para a leitura que aqui é feita. Joseph K. é levado por dois funcionários, vê uma janela que se abre de repente:

«... uma figura humana, vaga e imaterial àquela distância e àquela altura, inclinou-se abruptamente para a frente e estendeu os braços ainda mais. Quem seria? Um amigo? Um bom homem? Seria alguém que dele se compadecia? Alguém que o queria ajudar? Seria apenas uma pessoa? Ou seria a humanidade? Estaria a ajuda à mão?»

A própria estrutura do texto aponta para a completa indefinição desta cena e para o seu carácter quase irrelevante: tendo consumido as suas energias numa demanda perfeitamente circular, estas suposições na mente de Joseph K. de nada o libertam porque o tempo já não é de resgate, mas de execução. O que é possível ressalvar é que ele, que sempre lutou, tem até ao fim viva a curiosidade, embora desesperada, sobre a sua culpa, e ainda que deseje salvar-se, já não controla absolutamente nada do seu processo nem da execução para que é preparado e conduzido. Já não parece valer a pena gritar por socorro, tendo como tem diante de si uma figura enigmática, cuja natureza e intenções desconhece, porque a sua exaustão devido ao quando se debateu com o porquê da acusação sobre si, também lhe mina as derradeiras energias de auto-defesa e de fuga.

7. UM TEXTO ESFÍNGICO

A minha primeira leitura de O Processo, algures pelos meados do ano de 2003, foi evidentemente marcante, pois ali tudo ― tom e universo ― era novo, na medida em que o texto fazia sofrer e não me era fornecida qualquer âncora válida, um ponto de referência a que aportar conclusões e sentidos ou provisórios ou definitivos. O tormento da personagem principal, longe de cessar ou ser mitigado, vai-se intensificando: a esperança e o ânimo da reacção inicial de Josef K., o acusado, primeiramente marcadas por alguma sobranceria e autoconfiança, vão morrendo, ao mesmo tempo que esse estigma, inexplicado e inexplicável, manifesto em cada abordagem e em todos os olhares, impregna-lhe a pouco e pouco todas as fibras do ser, diminuindo-o, sub-humanizando-o.

8. O PESADELAR E O PERTURBATÓRIO COMO TOPOI

Se, de acordo com o catecismo católico, o topos Purgatório, imaginário? efectivo?, não sabemos, é aquele em que o vivente humano, maculado e imperfeito, atravessada a porta da morte, cai num processo purificador, antes de lhe ser possibilitada a visão beatífica do Céu, ao leitor e estudioso de Kafka espera uma tonalidade mental, continente incartografável, pontiagudo como faca, instável, deprimente e demencial, que poderia nomear-se de Perturbatório, cuja saída para subsequente visão beatífica pode ser apenas da responsabilidade completa do que lê e do que estuda porque nenhum narrador-autor kafkiano lha dará. Kafka é o lado pesadelar do onírico ou o onirismo em estado de permanente pesadelo e a tarefa do leitor terá de ser a de estabelecer a justa onirocrisia, o fio de Ariana possível. Ler os seus textos gera um efeito espinhoso, mergulho na água gelada de um Elba petrificado. Esse baptismo no desconforto de todas as buscas inúteis, de todas as decisões inconsequentes ou erróneas, de todos os movimentos, afinal, para lado nenhum, é-nos revelado como aparentemente consubstancial à espécie humana e uma necessidade. A necessidade de um acordar redobrado para a paciência, para a saúde e a resistência que quotidianamente buscava o devoto e sábio avô Amschel, no seu hábito austero, que lhe não garantiu talvez a centenariedade, mas lhe recordava certamente, com toda a violência, a mortalidade e a dor e lhe incutia uma enorme humildade fosse em face do seu Deus Elohim, fosse dos demais seres humanos.

O acto de construção do objecto de arte literário, objecto em que se transmuta tantas vezes também o próprio comentário crítico, é a perpétua e necessária reedição da função orfeica que, na perda tormentosa e na decisão a todos os esforços de resgate, descendo aos infernos ou deles subindo – Kafka, mais que viver, procurou compreender a existência, dando-lhe um tom de protesto e elegendo a literatura como o seu caminho – conserva intacta a lira encantatória como instrumento poderoso de humanização e condescendência sobre quaisquer dos elementos que lhe foram num primeiro momento oponentes.

Mas parece evidente que, no caso kafkiano, essa função orfeica é anti-encantatória e à sua lira faltam cordas ou estão claramente desafinadas: não é a paz e o deleite capazes de amansar feras o que este objecto de arte comporta. Pelo contrário, a arte consiste em mostrar outras dimensões que tendemos a rejeitar, mas que carecem de potente iluminação. Por isso mesmo, com ele agudiza-se o inferno no próprio inferno e este contagia de vazio e desespero mesmo os lugares de ventura. Nem a amplitude dos espaços é menos geradora de claustrofobia. Lá, onde o silêncio é eloquente e a serenidade se bebe a largos tragos, como por exemplo na deslumbrante catedral de Praga, Joseph K. não colhe uma suficiente trégua com a sua oprimente interioridade. A catedral nada tem de espiritual para ele que não encontrará nela qualquer analgesia à sua angústia. Pelo contrário, a sua angústia mais se adensa, mais se enovela, e nem da peripatética conversa com o padre, circulando de um lado para o outro, segurando a lâmpada iluminadora dos sermões, K. obtém a luz. Para o parto da confiança e da alegria, e antes de mais, para uma saída da sua situação de acusado, parece não haver episiotomia que baste.

Um bom exemplo da inconsolabilidade dos espaços está precisamente no nono capítulo de O Processo aliada a uma estranha marcação temporal: lá fora chove, Joseph K. chega à catedral precisamente às dez horas. Ali aguarda o italiano. Uma vez que este não chega, Joseph K. determina-se a esperar durante meia hora, mas aborrece-se, pensa em sair. Muda, porém, de ideias perante o desconforto lá fora; aconchega-se melhor no seu sobretudo, arrastando um farrapo para debaixo dos pés e decide permanecer sentado, folheia o álbum de monumentos que trouxe, observa os retábulos ao longo das paredes da catedral, o contorno indefinido dos objectos e a aparência grotesca dos raríssimos elementos humanos, o sacristão coxo e a velha de pesado lenço diante da imagem da Virgem:

K. percorreu as duas naves laterais e encontrou apenas uma velha envolta num pesado lenço a olhar, ajoelhada, para uma imagem da Virgem. Viu ainda ao longe um sacristão coxo desaparecer por uma porta na parede.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 18.º §).

Ao longe, no altar-mor, brilhava um grande triângulo de círios; K. não podia dizer com segurança se já tinha visto. Talvez só agora tivessem sido acendidos. Os sacristães são sorrateiros por profissão e não se dá por eles. Quando K. casualmente se voltou, viu, não longe de si, uma vela comprida e grossa que ardia presa a uma coluna. Por bela que fosse a intenção, para iluminar os retábulos, que na sua maioria se encontravam na penumbra dos altares laterais, a luz da vela não só era nitidamente insuficiente como também ampliava o negrume. O italiano, não aparecendo, tinha procedido duma maneira tão inteligente quanto indelicada, pois, de facto, não teria podido ver nada, ter-se-iam de limitar a examinar algumas imagens com o auxílio da lanterna eléctrica de K.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 19.º §).

Tudo está desprovido de encanto, dominando o fantasmagórico e o negrume. No fim deste capítulo, após o colóquio com o padre, quando pretende ir embora, Joseph K. tem medo, está escuro, sente-se perdido e inseguro, desconhece o caminho e pede auxílio ao padre que lho dá. Joseph K. esquece que tem uma lanterna eléctrica no bolso, mas da sua desorientação não poderá qualquer luz dar conta:

Ainda que nessa altura não lhe tivesse ocorrido tal pensamento, K. respondeu logo:
– Pois quero. Tenho de me ir embora. Sou gerente dum banco e tenho lá gente à minha espera; vim aqui apenas para mostrar a catedral a um estrangeiro.
– Bom, – disse o padre estendendo a mão para K. –, vai.
– Sozinho nesta escuridão não sou capaz de me orientar.
– Vai até à parede da esquerda, depois continua ao longo dela sem a deixares e encontrarás a saída.

O padre mal se tinha afastado alguns passos e já K. gritava muito alto:
– Espera, por favor!
– Estou à espera.
– Não queres mais nada de mim?
– Não.
– Há pouco foste muito amável para mim e explicaste-me tudo, mas agora deixas-me como se já não te preocupasses comigo.
– Mas tu tens de ir embora.
– Pois tenho, compreende.
– Compreende tu, primeiro, quem eu sou.
– És o capelão da prisão – disse K., aproximando-se do padre.

O seu regresso ao banco já não era tão necessário como o havia manifestado; ainda podia muito bem ficar.
– Pertenço à justiça – disse o padre. – Por que razão havia eu, pois, de querer alguma coisa de ti? A justiça não te quer nada. Agarra-te quando vens e larga-te quando partes.


O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 109.º a 125.º §§).

Antes, porém, esse misterioso padre sobe a um insólito púlpito minúsculo, acende uma lâmpada, e em vez proferir um sermão, interpela Joseph K. que já se dirigia para a saída; mostra conhecê-lo e ao seu processo; diz-se capelão da prisão, desenrola-se um diálogo que promete auxiliar e tranquilizar Joseph K. A figura do padre, no seu púlpito absorve a função de juiz e obtém de Joseph K. uma atitude submissa, de obediência imediata e irreflectida, porque à voz de comando do padre junta-se a sua importância hierárquica. Subitamente, já é noite, mas uma noite inapelável porque dupla, uma vez que é também interior a Joseph K.:

O padre inclinou a cabeça para a balaustrada; só agora parecia oprimido pelo tecto do púlpito. Lá fora como estaria a tempestade? Não era um dia nublado, era já noite alta. Nenhum brilho de qualquer vitral era capaz de atravessar a parede de trevas.
E, no entanto, o sacristão começava precisamente nessa altura a apagar, uma após outra, as velas do altar-mor.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 63.º e 64.º §§).

O tempo em literatura é sempre um tempo morto, como mortas são também as personagens, os momentos e as paisagens. Cabe, porém, à palavra poética erigi-los de novo a uma existência que, embora de actualização fugaz e euridiciana, é em todo o caso indelével à sensibilidade e prolongável mediante a crítica.

E Kafka exige ainda tal crítica. O seu Mundo dos Mortos continua a ecoar, à procura da verdade, nos meandros processuais da existência de cada um de nós, indigitados e acusados tantas vezes pela doxa que nos envolve proximamente, e pode accionar, hoje, energias de reflexão provocatórias da vida social e do papel do indivíduo quanto ao lugar que ocupa na aldeia, que é hoje o planeta, porque a literatura será sempre das manifestações artísticas mais poderosas na tarefa de, mediante a retórica do insólito e da ironia, desmontar, questionando-os, sistemas de opressão e de injustiça onde o homem corra o risco de constituir, no farejar utilitário de quaisquer estruturas, apenas um número sob manipulação. Seja pelo Templo, seja pelo Partido ou mesmo pelo Capital, na sua lógica global cega, tais estruturas permanecem activas, com todas as pulsões bárbaras e capazes de sangue que lhe são consubstanciais. Os seres humanos, ainda há poucos momentos arrancados à Idade da Pedra, permanecem enredados na indústria da guerra, na exclusão dos mais fracos, portanto, na sujidade de estar sempre em queda.

9. A MULHER E AS MULHERES - DEPRECIAÇÃO E AMBIGUIDADE

Aparentemente, o padre vem aconselhar Joseph K., dar-lhe orientações úteis. Nisso acredita Joseph K. É, porém, o próprio padre que lhe exige desconfiança até de si, sugerindo que não se iluda. Uma das coisas que começa por fazer é verberar o papel das mulheres junto de quem Joseph K. busca auxílio e o certo é que, quer um quer outro, manifestam uma peculiar misoginia, acentuada sobretudo em Joseph K., que caricaturiza a mulher quanto ao seu poder e à sua utilidade:

– Procuras demasiado o auxílio de estranhos – disse o padre com um ar de desaprovação – e em especial o das mulheres. Não vês que esse não é o verdadeiro auxílio?
– Algumas vezes, mesmo muitas, podia dar-te razão – disse K. –, mas sempre não. As mulheres têm um grande poder. Se eu conseguisse que certas mulheres que conheço trabalhassem em conjunto a meu favor, não tenho dúvidas de que triunfaria, especialmente numa justiça como esta que é quase toda constituída por homens que são uns autênticos doidos por saias. Experimenta mostrar, ao longe, uma mulher ao juiz de instrução, e vê-lo-ás derrubar a mesa e o acusado só para chegar a tempo.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 61.º e 62 §§).
A Desespacialização

Mergulhar na matéria literária kafkiana corresponde a uma experiência do perturbante irredutível e o que perturba, entre muitas outras coisas, é simultaneamente o movimento incessante das personagens, perdidas no acessório, desconhecedoras ou incapazes do que para elas mesmas signifique resposta a problemas, caso ela exista, e é também o desenho dos espaços em que se movem, sempre baços, apertados e desprovidos da possibilidade de contemplação do conjunto. A questão da desapropriação do espaço, a questão da desespacialização oprimente, é algo que, dentro da obra deste autor, coloca-se mais agudamente ainda em Metamorfoses.

Ainda no seu gabinete, enquanto regista de um dicionário as palavras que o ajudarão com o italiano, o seu território torna-se lugar de passagem e, sobretudo, de invasão, sendo que, perante isto, Joseph K. não exprime senão conformismo:

Depois disto o director despediu-se de K. este decidiu passar o tempo que ainda lhe restava a copiar do dicionário vocábulos pouco usuais de que tinha necessidade para o desempenho da sua função de guia. Era um trabalho extremamente enfadonho; contínuos traziam o correio; funcionários vinham pedir informações diversas e, vendo K. ocupado, deixavam-se ficar à porta mas não se iam embora antes daquele os ter ouvido; o director-interino não deixava escapar a oportunidade de incomodar K., entrava com frequência no gabinete, tirava-lhe o dicionário da mão e folheava-o nitidamente à toa; os próprios clientes, quando a porta se abria, surgiam na semiobscuridade da sala de espera e curvavam-se, hesitantes – queriam chamar a atenção mas não tinham a certeza de serem vistos; tudo se agitava ao redor de K., como se este fosse o centro de tudo, enquanto ele compilava as palavras de que tinha necessidade, folheava o dicionário para as transcrever, procurava pronunciá-las e, finalmente, tentava aprendê-las de cor.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 7.º §).

No capítulo nono, Na Catedral, o penúltimo de O Processo, sob análise neste trabalho, surpreendemos precisamente, quando ao espaço, essa impressão recorrente nas obras do autor – a de que qualquer que seja a configuração espacial e o respectivo contexto, tarde ou cedo ela comportará desconforto e desorientação, activando comportamentos bizarros, observações insólitas e um tom geral de insegurança e atrapalhação:

(...) as dimensões da catedral pareciam-lhe estar precisamente na fronteira do que era suportável pelo homem.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 33.º §).

(...) Se K. agora não se tivesse voltado completamente, o gesto que fizera não teria passado dum pueril jogo de escondidas. Voltou-se e viu então que o padre lhe fazia sinal para se aproximar. Como agora tudo se podia passar sem qualquer disfarce, correu para o púlpito – por um lado por curiosidade e por outro para poupar tempo – em grandes e velozes passadas.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 35.º §).

É o facto de se ver observado pelo padre que aqui condiciona a sua perspectiva. Joseph K. perdera, desde que fora acusado, o anonimato. Todos o conhecem e lhe falam do seu processo, da sua acusação, e além do mais, parecem saber mais que ele. O seu nome reveste-se de indesejável e é fonte de embaraço:

– És Josef K. – disse o padre, levantando a mão por cima do parapeito num gesto vago.
– Sim – volveu K., pensando como dantes pronunciava o seu nome com toda a franqueza e como, ultimamente, este era para ele um verdadeiro fardo; agora, pessoas que encontrava pela primeira vez, conheciam-lhe o nome. Como seria agradável só ser conhecido depois de ter sido apresentado.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 35.º e 36.º §§).

Em Kafka, não há a possibilidade de quedas icárias, uma vez que o problema da subida, a fim de observar melhor, nem sequer se coloca. A paisagem aquém e além deles, obliterada da acção ou tornada irrisória, não pode oferecer-lhes transposições simbólicas, simbólicas evasões, relativizações do eu, a redenção mediante o sonho. Pelo contrário, dir-se-ia que qualquer paragem consoladora apenas relevaria os próprios medos e a atitude de culpa por ter momentaneamente rompido com o cumprimento (ou a simulação de cumprimento) do seu dever:

(...) a janela, à qual, nos últimos tempos, se costumava sentar com demasiada frequência, atraía-o mais do que a secretária, mas resistiu e pôs-se a trabalhar.
(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 2.º §).

10. A CONSTRUÇÃO ORACONAL: REDUNDÂNCIA E CIRCULARIDADE

Cada conjunção adversativa, cada oração coordenada adversativa representa acentuadas vezes aquela curva no labirinto sem fio de linho possível a que Joseph K., e de resto todos os demais protagonistas kafkianos, permanecem condenados. Encontramos à superfície do texto homólogas marcas de uma circularidade inconsequente e inconclusiva nos percursos e buscas das personagens relevantes, nas tomadas de decisão indecisas, nas acções erróneas, que igualmente se detecta no plano da profundidade textual.

O modo como as linhas de rumo lógicas da construção oracional kafkiana, marcadas pela adversatividade e pela concessividade, representam inflexões circulares, mudanças de direcção quer do ponto de vista da acção, quer do da reflexão. É precisamente a esse nível que desde logo se giza a espiralização da narrativa rumo ao paroxismo da inconsequência e da inutilidade, pois a verdade só vem no momento da morte e não é acessível a partir do ângulo da leitura. Quando, em face da sua execução, nas últimas linhas de O Processo, Joseph K. se interroga sofregamente acerca de um vulto que, à distância e a contra luz, enigmaticamente se manifesta silencioso entre a possibilidade de auxílio e a da conivência com os seus jocosos executores, a faca que lhe espetam no coração e nele rodam duas vezes configura claramente a ideia de chave: a chave que se roda e que serve para abrir e para fechar está ali manifesta e mais que descobrir qual era a sua acusação, como a atitude de culpa o fora impregnando numa espécie de crescendo implícito impreciso em todos os seus movimentos e buscas, a única interrogação que Joseph K. exclui é o «porquê» daquela execução, porque, caso ela se não operasse, o caminho por que Joseph K. optaria era o do suicídio, obliterando assim a raiz da sua angústia. O problema da morte não é o problema da morte e, tal como o desfecho de O Processo, no texto Pequena Fábula, as duas personagens, o rato e o rato, estão diante do mundo infinito onde não há fronteiras e o que a princípio parecia tão grande que até metia medo ao rato, levando-o à procura de alguma segurança só vem no momento da morte, metáfora da vida: a verdade só vem no momento da morte. Fugindo do infinito não é possível reverter a marcha porque não há muitas soluções.

A resposta às interrogações de Joseph K. é, portanto, escatológica, só é acessível mediante a morte, porque mesmo não havendo teologia nem transcendência, nem metafísica, há, o que é sobejo, a força eloquente do silêncio. Com a sua morte, acaba a agitação, acaba a angústia: faz-se silêncio. Só a morte estanca a agitação e a inquietude da personagem kafkiana. Ora, o uso das orações coordenadas adversativas e das subordinadas concessivas, apresentando situações, mas pondo-as de imediato em causa ou atenuando-lhes a força, sublinha a sua visão do mundo, manifesta continuamente o paradoxo que nele está inscrito:

Era uma incumbência que, noutra altura, teria sem dúvida considerado honrosa, mas que aceitava agora de má vontade e apenas porque só com grandes esforços podia ainda defender a sua reputação no banco.

(…) o tempo que actualmente passava no banco rendia-lhe muito menos que antigamente, passava várias horas em que mal conseguia fingir que trabalhava, mas, apesar de tudo, as suas preocupações eram maiores quando não estava no escritório.

Teria podido sem qualquer esforço recusar a maior parte dessas missões, mas não ousava fazê-lo, visto os seus receios assentarem nos mais débeis fundamentos e uma recusa equivaler a confessá-los.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §)

Sob uma escrita essencialmente voltada para o interior, em permanente auto-análise e perpétuas auto-justificações, mas alheia a psicologizações, as personagens revelam uma endémica insegurança. Comprimidos pela omnipresença delatora dos sistemas, em estado de aflição por motivos profissionais ou outros, desconfiados das acções e intenções alheias, amedrontados e cercados de ameaças imaginárias, mas que poderiam ser reais do seu estreito porque atormentado ponto de vista, a personagem kafkiana sufoca nas próprias dúvidas; é, portanto, em desconforto e em dúvida que, no capítulo em análise, Joseph K., indigitado para servir de guia turístico a um correspondente italiano do banco onde trabalha, pondera as vantagens e desvantagens dessa tarefa, o significado e o objectivo que representa terem-no escolhido a ele e não a outro, impendendo como impende sobre ele o desassossegador estigma de acusado. À tona dos raciocínios que se desenrolam, justificadamente paranóicos, o medo é o elo condutor, líquido amniótico donde germinará uma linha de rumo imediata:

Não queria que o afastassem nem um só dia do seu trabalho, pois o medo de não voltar a ser admitido era demasiado grande e, embora ele considerasse exagerado tal receio, nem por isso se sentia menos aflito.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §)

Mas mesmo assim, seja esta experiência do perturbador, no seu todo, alavanca de uma imediata ou posterior reacção radicalmente oposta, marcada pela clara rejeição da mundividência kafkiana, sombria e encurralada, portanto, afinal e paradoxalmente, uma experiência luminosa para o estudioso e para o leitor, pela rejeição que desencadeia; seja ela, pelo contrário, uma confluência interior com esse homólogo ao mundo dos homens, que é o mundo literário kafkiano, o que resulta é certamente uma reperspectivação da condição humana: é o observador, o leitor, o estudioso, assim como, a montante e num tempo outro, o escritor, que tingem, no processo de escrita assim como no de leitura, com o cinzento, o optimista, o desesperado, o árido, que os habite, esta condição, anuindo a ela ou rejeitando-a. É deles a responsabilidade por ver e fazer ver no homem esse inexorável clausus locus sine clauis, hermético labirinto, irónica condição-condenação ao sem-sentido de tudo. Por outras palavras, a perspectiva é tudo. Do ângulo adoptado depende a coloração e a maior ou menor completude do observado.

Mas não se pense que o humor se ausenta inteiramente do texto kafkiano ou que só encontraremos o de tipo negro. Intrometem-se marcas que roçam o insólito e a leve loucura:

Respondeu com algumas frases de circunstância que o italiano escutou com um sorriso, ao mesmo tempo que, nervosamente, levara repetidas vezes a mão ao espesso bigode azul-cinzento que, de tão perfumado, quase tentava uma pessoa a aproximar-se para o cheirar.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 5.º §)

Sob os toldados céus do mundo kafkiano, sempre plúmbeos e chuvosos, as personagens – podemos tomar Joseph K. como modelo para a generalidade dos protagonistas nos demais textos – nunca erguem os olhos da sua agitação, pois não há algum azul em que reparar e, mesmo que houvesse, nunca poderiam deter-se nele. Por outro lado, também à superfície, os pássaros não trinam, a música nunca se manifesta, como é desconhecido o bálsamo de qualquer melodia porque só a aridez pode dominar, não a contemplação do horizonte por si mesmo:

De facto, numa igreja assim tão vazia isso tornava-se extremamente necessário. Mas num sítio qualquer da igreja, ajoelhada perante uma imagem da Virgem, havia ainda uma velha que também devia ter vindo. Mas se ia haver sermão, porque não começam a tocar o órgão? Este, porém, escondia o seu imponente volume no meio das trevas, que pouco mais deixavam passar que umas débeis cintilações, e mantinha-se silencioso.

Se, à parte quaisquer psicologizações, o texto vive da e para a interioridade nem por isso há nela qualquer momento de repouso, de doçura, aliás, na medida em que reproduz a desespacialização, o texto é, ele mesmo, espaço de passagem com que as personagens se podem retorcer num inescapável sofrimento. Inapelável também: todo o Inferno da Divina Comédia, horrivelmente belo na sua grandiosidade e contrastes exprime menos a condenação, sobrelotado de espíritos, entidades mitológicas, entre as quais o Minotauro, e de demónios, que todo o universo literário Kafkiano, nas suas tonalidades fechadas, na expressão de todas as rotinas dos indivíduos no seio da sociedade burguesa:

Era lo loco ov'a scender la riva
venimmo, alpestro e, per quel che v'er'anco,
tal, ch'ogne vista ne sarebbe schiva.

Qual è quella ruina che nel fianco
di qua da Trento l'Adice percosse,
per tremoto o per sostegno manco,

che da cima del monte, onde si mosse,
al piano è sì la roccia discoscesa,
ch'alcuna via darebbe a chi sù fosse (1):

(A Divina Comédia, Canto XI, O Inferno, vv. 1-9)

Perante a lógica oprimente dos poderes exercidos, da burocracia transversal a tudo e de tudo bloqueadora, toda a beleza é irrelevante, inaplicável, inexistente à sensibilidade observadora de Joseph K. e dobra-se servilmente a outros interesses imediatos, a uma lógica que não apenas a transcende negadora e negativamente, como também a subjuga:

(...) porém, o que decisivamente determinara a sua escolha fora o facto de ter conhecimentos de História de Arte, conhecimentos esses cuja importância foi exagerada no banco ao saberem que ele durante um certo tempo havia sido membro da Junta para a Conservação dos Monumentos Artísticos da Cidade, o que aliás acontecera unicamente por uma questão de negócio.

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 1.º §)

Ainda assim poderemos encontrar a esperança? Como concluiu Vilas-Boas, no seu ensaio Ler a Esperança em e para além de Kafka (1984),

«... o elemento esperança é detectável não só a nível diegético, como sobretudo a nível das estruturas deixadas abertas para a leitura. É juntamente pela conjunção dos vários factores simultaneamente presentes (a esperança, o desespero, o niilismo, o absurdo) que esta obra impede uma leitura fechada, em sentido único.»
E é por isso, porque cada leitura é única e exclui o determinismo de conclusões unívocas, que pode dizer-se da completa responsabilidade de quem lê quer a capacidade imaginativa para alternativas ao banho gelado desta exigente mundividência, quer, no fundo, mesmo nele mergulhando, a capacidade de evasão desse universo, afinal um entre muitos possíveis.

11. À PORTA DA LEI OU O PADRE ACOMPANHA JOSEPH K., O CONDENADO

Em face do texto inciso À Porta da Lei, que o padre usa como exemplo para que Joseph K. fique clarificado, isto é, ainda mais confundido e perdido, relativamente à natureza do tribunal, e que perceba a ilusão que tomam para com ele, o tribunal, muitos dos que dele se acercam, percebe-se na forma e no conteúdo do discurso o estabelecimento dos registos mais afectivos, embora eivados de ambiguidade, em toda a narrativa: sobretudo a afectividade amedrontada de Joseph K., é certo, que de repente confessa a sua confiança quanto ao seu processo, mais que em quaisquer outros, naquele padre acabado de conhecer tão superficialmente, ele que tão profundamente é conhecido pelo padre:

– És uma excepção entre todos os que pertencem à justiça. Tenho mais confiança em ti do que em qualquer deles, embora conheça muitos. Contigo posso falar abertamente.
– Não te iludas – disse o padre.
– A que respeito podia eu iludir-me? – perguntou K.
– Estás enganado a respeito do tribunal – respondeu o padre. – Nos escritos que servem de introdução à Lei fala-se dessa ilusão: Em frente da Lei está um porteiro...

(O Processo, capítulo nono, Na Catedral, 84 a 87.º §)

Do meu ponto de vista, no registo aqui e ali afectivo, mas também afectado (palavra que contém todos os sentidos adequados ao contexto do processo, mas que não se podem vincular completamente a este padre: fingir, presumir, prejudicar, interessar, destinar, aplicar, subordinar, causar padecimento a, alterar moral ou fisicamente), do padre, há todos os contornos figurativos do acompanhamento do condenado que constituem uma velha tradição de consolo espiritual final, onde, por um lado, a sociedade da pena capital se auto-absolvia da execução dos corpos, na medida em que proporcionasse condições e oportunidades de arrependimento e redenção às almas. Era, e é, a sociedade no auge da dualidade platónica tão conveniente e limpa na arte de eliminar. Todo o discurso do padre é peripatético, há ensino e há enigma, há solicitude, quase cuidado e preocupação pelo destino de Joseph K, mas há também o desfile de todo o absurdo plurívoco que reside na completa ambiguidade das interpretações daquela narrativa, À Porta da Lei. Passeiam pela catedral e dialogam, mas mais se agudiza o pathos e a desorientação de Joseph K.

Nesta linha cultural, nesta simbologia de acompanhamento de um condenado feita pelo padre, e onde não há orações nem visões do Paraíso, mas o nada com o nada dentro, a catedral encerra todas as marcas de escuridão que antecedem a próxima execução de Joseph K. Mesmo a figura grotesca e infantilizada do sacristão coxo remete para a deformidade quasimodesca, mas não pura ou inocente, pelo contrário ali absorvendo o papel irracional próprio de um carrasco.

Nas trevas da Catedral, aquele era o último dia de Joseph K. antes de completar trinta e um anos. Mesmo o enterro de Cristo, que Joseph K. contempla como novo, mas trabalhado ao jeito tradicionalmente costumado, preanuncia esta ideia de petrificação mortal, para onde a entropia, o caos interior a Joseph K, o arrasta. Condenado-vítima, K. já está demasiado exausto para raciocinar com clareza, para acreditar que pode transcorrer a porta da absolvição e da inocência, não pode reconhecer no diálogo com o padre senão toda a ambiguidade em que vem laborando desde que primeiramente ouviu a acusação e procurou justificar-se perante a dona da casa e também perante a menina Bürstner, sua vizinha.

A narrativa incisa À Porta da Lei mostra a Joseph K. as possibilidades de liberdade, de escolha por parte, tomando a personagem do homem como exemplo, mas mostra também o inverso, todos os obstáculos que se lhe interpõem. Transcorrer a porta da Lei, ou não, é decisão que qualquer um de nós hesitaria em tomar. Puníveis e sujeitos ao sofrimento abrindo-a ousadamente ou aguardando por um convite autorizador, o melhor será envelhecer, travar conhecimento e familiaridade com as pulgas na gola do porteiro e esperar para ver o que acontece depois.

12. KAFKA OU O CONCLUIR DA NECESSÁRIA INCONCLUSIVIDADE

Foi precisamente perante o peso e a espessura deste autor, do romance referido e do seu protagonista, no que neles há de provocador, porque esfingicamente indecifrável, que quis desenrolar uma nova reflexão em torno de linhas de leitura mutuamente remissíveis da superfície – os valores da adversatividade e da interrogação, no plano morfológico – à profundidade do texto, no plano semântico. Estando os textos kafkianos ancorados ao tempo e à realidade social e estando numa tradição de apresentação do mundo como labirinto, de ausência de chão, da uma permanente falta da melhor orientação, como activar quanto de poético cabe à crítica literária absorver do seu objecto e possa constituir, em si mesmo e como testemunho pessoal, algo de absolutamente único? A aspiração de criar, de extrair do nada, do fazer novo, (articulados ao profundo e devorador desejo de ser lido), por muito ilusória que seja, é-nos, aos homens, congénita, mesmo quando se trata da construção de narrativas onde o indivíduo é insignificante, recordado da sua insignificância, e progressivamente despojado da sua dignidade, como acontece em Kafka. Mas nele tudo isto deve ser visto como o desconforto que nos acorda, a perturbação que nos alerta para as possibilidades, e tantas vezes a dura, trágica e catastrófica concretização, da violência, da opressão, da maldade. Aí, Kafka, todo ele, absorve uma espécie de dimensão profilática dos excessos da espécie humana, na medida em que, expondo-os nas suas narrativas, se gera um processo de denúncia para que mais vincada possa ser a rejeição daqueles por parte do indivíduo.

Mas as massas, volúveis e manejáveis pelos poderosos gestores da violência usurpadora que ainda campeiam impunes nos nossos dias, não são passíveis de integrar este processo.

__(1) Descemos por uma rampa formada por um enorme deslizamento de pedras, causado provavelmente por um terremoto ou pela contínua erosão. O barranco derrubado esculpia vários caminhos íngremes e irregulares da beira do precipício até em baixo, permitindo a descida com dificuldade. Quando descíamos por esse caminho tortuoso, encontramos, na beira do barranco destruído, o Minotauro de Creta. O touro ficou tão enfurecido quando nos viu que mordeu as suas próprias mãos de raiva. Mas Virgílio logo o repeliu, gritando: (...) (excerto traduzido de A Divina Comédia, Canto XI, O Inferno, vv. 1-9).

BIBLIOGRAFIA

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CARTA AO PAI (Brief an den Vater), Trad. e Pref. De Manuel João Gomes. Lisboa: & etc., 1983, 70 pp, (Colecção série K n.9).

IZQUIERDO, Conhecer Kafka e a sua obra, Trad. De Manuel Mota. Lisboa: ed. Ulisseia, s/d (1981).

BROD, Max, Franz Kafka, Trad. de Susana Schnitzer da Silva. Lisboa: Ulisseia, s/d (1967?).

ROBERT, Marthe, Franz Kafka, Trad. de José Manuel Simões. Lisboa: Ed. Presença, 1963.
VILAS-BOAS, Gonçalo, Ler a Esperança em e Para Além de Kafka, apáginastantas. Lisboa, 1984.